Multado em R$ 2 milhões, dono de rede de lojas em Santos pode ter bens confiscados; defesa nega fatos que levaram à condenação e entra com recurso
Pessoas que trabalharam nas lojas de um empresário do litoral de SP condenado por submeter funcionários a trabalho análogo à escravidão relatam uma rotina de trabalho marcada por exploração, humilhação e irregularidades.
“Uma situação precária. Muita coisa errada, muita coisa errada”, disse em entrevista nesta sexta-feira (24) um ex-vendedor de 38 anos. Temendo retaliações, ele pediu para não ser identificado e será chamado pelo nome fictício de Pedro.
Entrava 9h e saia três, quatro horas da manhã. Tinha gente que já saia seis horas da manhã de lá. O almoço, uma marmita, quando chegava, vinha muitas vezes azeda. Muita gente aceita porque precisa”, disse Pedro, que trabalhou em uma das lojas do empresário por seis meses.
No final de outubro, a Justiça de Santos condenou em 1ª instância o empresário Paulo Roberto da Silva Ursini a pagar R$ 2 milhões por submeter funcionários de três estabelecimentos a condições degradantes semelhantes a trabalho escravo. Contatada nesta semana, a defesa do empresário disse que a condenação não é definitiva e que entrou com recurso.
Segundo a decisão judicial da 7ª Vara Trabalhista de Santos a que a reportagem teve acesso, Ursini é proprietário das lojas Trance Games, de produtos eletrônicos, e de um restaurante, todos em Santos.
Foi em uma destas lojas que também trabalhou a jovem Liz Morena Barbosa, hoje com 18 anos. Ela afirma que, em 2022, chegou com uma prima à loja por meio de um anúncio e ambas foram admitidas como vendedoras em um suposto regime de experiência. As duas eram menores de 18 anos na ocasião.
O dono conversou com a minha mãe e falou que nós iríamos passar por uma experiência de vendas e que depois ele ia assinar nossa carteira de trabalho. Só que quando chegamos lá, eles colocaram eu e minha prima pra limpar a loja toda. Deixou a gente lá das 10 da manhã até 18 horas da noite sem almoçar, falaram ‘vocês vão buscar o nosso almoço, mas vocês não vão almoçar’ e que se nós quiséssemos comer lá, era descontado do salário” - relembra Liz.
Além de submeter seus empregados a trabalho análogo à escravidão, Ursino também foi condenado por submetê-los a jornadas exaustivas, retenção de documentos e pertences pessoais, ausência de pagamento do salário mínimo, de férias e de 13º.
O hoje barbeiro Heitor Forganes também não tem boas lembranças de sua breve passagem por uma das lojas do grupo. “Foi em 2020, na pandemia. Muitas pessoas procurando emprego. Na época, aquele desespero por emprego de todo mundo, eu com filho pra nascer. Arrumei um emprego lá e foi algo totalmente surreal. Eles pediram para eu levar carteira de trabalho no primeiro dia. Achei meio esquisito, porque normalmente você leva carteira de trabalho depois de um exame admissional”.
“Foram 14 horas de trabalho, eu não me esqueço”, acrescenta Heitor. “Sem alimentação, sem uma pausa pra ir ao banheiro, era um sacrifício". Humilhados, Heitor e Liz trabalharam um dia e não voltaram mais às lojas.
“Minha mãe falou assim, ‘Você não vai mais voltar lá, você não vai mais ir lá fazer experiência nenhuma, porque como é que eles te deixam das 10 da manhã até 6 horas sem comer, sem almoçar’”, conta Liz.
Heitor afirma que nunca mais viu sua carteira de trabalho, retida pela empresa. “Está com eles até hoje. Passei meses pedindo pra me devolverem. Também não me pagaram esse dia trabalhado”, narra o barbeiro.
Pedro afirma que ficou seis meses na empresa por necessidade e testemunhou ou foi vítima de uma série de abusos. “Chegava cinco minutos atrasado, ele [proprietário] cancelava a folga, eu fiquei três meses sem folga. Já trabalhei das 8h de um dia às 6h da manhã do outro. 22 horas seguidas. Pra só ir em casa tomar um banho, comer e entrar de novo de manhã. Enfim, tudo que eu acompanhei dessa condenação, eu percebi que tudo é verdade”.
Uma humilhação em um momento de intensa vulnerabilidade foi a gota d’água que o fez sair da loja, apesar da necessidade, conta Pedro. “Cheguei um dia em casa e minha mãe, que estava doente, estava desmaiada na sala. Do jeito que eu estava eu fui no hospital com ela e avisei todo mundo que não ia trabalhar. O proprietário simplesmente virou e falou, ‘você é enfermeiro, você é ambulância?’. Eu fiquei puto da vida e falei, não vou mais”.
É escravidão moderna, não tem outra descrição, não tem outra definição para aquilo, é escravidão”, desabafa Heitor. “Eu desejo que eles fechem as portas e que seja feita justiça. Que eles sejam processados por todas as pessoas que passaram por aquele lugar e que passaram pela humilhação que eu passei. Porque quem vai procurar emprego não é porque quer brincar, é porque precisa pagar as contas, precisa sustentar uma casa”.
Pedro, Heitor e Liz não estão entre os trabalhadores cuja passagem pelas lojas gerou a condenação do empresário. Os três disseram que avaliam também denunciar as empresas à Justiça.
Na decisão, a Justiça determinou multa por danos morais coletivos no valor de R$ 2 milhões e condenou o empresário ao afastamento de todas as atividades empresariais, bem como o confisco de todo e qualquer bem de valor econômico, com o valor de venda revertido ao Fundo de Amparo do Trabalhador.
A condenação é resultado de uma ação civil pública aberta pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) de Santos. O órgão disse que a ação foi motivada por uma investigação que concluiu que o empresário sonega pagamento de verbas rescisórias e de vínculo de emprego, persegue funcionários e promove trabalho infantil.
“Todos os fatos foram comprovados pela fiscalização de auditores da Superintendência do Trabalho e Emprego, que lavraram quatro autos de infração em razão da sonegação de vínculo de emprego, ausência de anotações fiscais, atraso no pagamento de salários e embaraço à atuação dos agentes fiscalizadores”, informou o MPT.
Testemunhas e documentos com anotações colhidos durante a investigação apontaram que os funcionários tinham uma jornada exaustiva de 14 a 24 horas de trabalho, sem o intervalo estipulado por lei.
Em depoimento, aponta a condenação, testemunhas disseram que empregados eram convocados para uma reunião no dia de pagamento que se estendia madrugada adentro, quando o empresário anotava os horários de entrada e saída dos funcionários durante o mês, sem registro das horas extras. Os trabalhadores assinavam recibos com o valor diferente do recebido e, muitas vezes, pegavam o salário em dinheiro.
Os trabalhadores, aponta o documento, também eram monitorados por câmeras de segurança, submetidos a revistas pessoais com contato físico diariamente. O empresário também foi condenado por manter adolescentes trabalhando nas mesmas condições em suas lojas.
Segundo a condenação, os pertences dos funcionários eram trancados em um armário e se quisessem comprar algo para comer, a refeição era, obrigatoriamente, comprada no restaurante do empresário, que descontava os valores no pagamento, sem controle dos empregados, prática conhecida como truck system, quando o empregador mantém o empregado em trabalho de servidão por dívidas.
Segundo informações do MPT, o Grupo Trance, ao qual pertence empresas investigadas, possui mais de 10 lojas de produtos eletrônicos (Trance Games), um restaurante (Culinária Artesanal), e um shopping denominado Centro Santos.
Para o MPT, “não se trata de um pequeno comerciante desorientado; o comportamento patronal agrediu os principais pilares da Constituição da República: os princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho e o direito fundamental de não ser submetido a tratamento desumano ou degradante".
Por meio de nota, a defesa do empresário argumentou que a empresa não foi condenada em definitivo e negou os fatos que embasaram a condenação. O empresário, disse a defesa, “sempre primou pelo bem estar de seus funcionários repudiando a forma como foi constituída a ação, atingindo e constrangendo a empresa diante seus clientes”. A defesa do empresário informou que vai recorrer da condenação.
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