Fugitivos da guerra, tesouros, crime e até família de ator brasileiro. Naufrágio no “Triângulo das Bermudas” brasileiro guarda muitos mistérios
Ao menos 11 toneladas de ouro ainda podem estar escondidas em alguma ilha do arquipélago de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo. A valiosa carga estava sendo transportada pelo luxuoso transatlântico espanhol Príncipe de Astúrias, que naufragou há um século, na região conhecida como “Triângulo das Bermudas” brasileiro.
O navio naufragou às 4h15 da madrugada de 5 de março de 1916, ao se chocar violentamente contra a única laje submersa da temida Ponta da Pirabura, no extremo sul da ilha principal, sob chuva torrencial e visibilidade quase zero, devido à forte neblina. Naquela região, existem mais de 100 naufrágios registrados.
O choque provocou um rasgo de 44 metros de comprimento no casco. A imponente embarcação foi a pique em menos de cinco minutos, sem dar chance de salvamento para a maioria dos passageiros. Não houve tempo sequer para pedidos de socorro. Ocorria, então, a maior tragédia marítima brasileira e um dos maiores naufrágios do mundo, em número de vítimas fatais, com 477 mortos, menor apenas que o do Titanic, que afundara quatro anos antes, após se chocar contra um iceberg, em 14 de abril de 1912, o que provocou de 1,5 mil mortos.
O Príncipe de Astúrias, considerado o “Titanic” brasileiro, fazia sua sexta viagem entre Barcelona, na Espanha, de onde havia zarpado em 17 de fevereiro de 1916, e a América Latina, com destino a Buenos Aires, capital argentina, mas antes faria uma escala em Santos, para desembarque de 89 passageiros e 265 toneladas de carga. Ele tinha 150,8 metros de comprimento, 19,1 metros de largura e 9,6 metros de calado (estrutura do navio que fica abaixo da linha d´água).
Naquela madrugada do naufrágio, enquanto os passageiros divertiam-se brincando Carnaval, o paquete navegava sob o comando do jovem, porém experiente, capitão José Lotina, de 34 anos, respeitado em toda a Europa por ser um dos raros a realizar a travessia entre os dois continentes. Chegou, inclusive, a acompanhar a construção do navio.
Segundo os registros oficiais, os 477 mortos perderam a vida em menos de cinco minutos. Tempo que o navio levou para afundar. A maior parte das vítimas estava presa aos escombros. Alguns passageiros dormiam, e os que conseguiram acordar não tiveram tempo de abrir as cabines. Oficialmente, o navio transportava 654 pessoas, dos quais 193 tripulantes.
Mas cerca de 1,5 mil passageiros, de diversas nacionalidades, viajavam clandestinamente nas classes inferiores, fugindo da Grande Guerra (Primeira Guerra Mundial), segundo depoimento dos sobreviventes à Capitania dos Portos de Santos, à época. Entre eles, judeus perseguidos, alemães que se recusavam a servir à pátria, caçadores de fortunas e cidadãos em busca de uma vida melhor na América do Sul.
Até hoje não se sabe exatamente a quantidade de pessoas mortas ou desaparecidas, já que muitos corpos, durante várias semanas, apareceram em diversas praias do litoral norte, o que tornaria o naufrágio o maior do mundo em número de vítimas fatais. Alguns deles foram enterrados por caiçaras locais, e até mesmo, pelos próprios sobreviventes. Outros foram consumidos por peixes e muitos jamais foram encontrados.
As 11 toneladas de ouro, carga que não havia sido declarada oficialmente, seriam usadas como lastro monetário para abertura de um novo banco na Argentina. Transportava também, mas dentro da cabine do capitão, 40 milhões de libras esterlinas em ouro, que o governo britânico havia destinado para pagamento de alimentos e suprimentos fornecidos pela Argentina durante a Primeira Guerra.
Em outro cofre, havia US$ 1 milhão; 214 mil pesos uruguaios; 2,318 mil pesetas e 1,56 milhão de réis. Os valores estavam registrados no Romaneio de Cargo, espécie de registro de cargas, documento da companhia Pinillos y Ysquirdo, proprietária do navio.
O Astúrias levava também 20 estátuas em bronze, encomendadas pela colônia espanhola de Buenos Aires, em 1908, que fariam parte do monumento La Carta Magna y Las Cuatro Reginones Argentinas, hoje conhecido como monumento de Los Espanoles, localizado no bairro de Palermo, em Buenos Aires.
O ouro ainda pode estar escondido em Ilhabela e o naufrágio pode ter sido criminoso. A suspeita é do espanhol Isidor Prenafeta Siles, hoje com 93 anos, neto de Gregorio Siles, tripulante que sobreviveu à tragédia e trabalhava no navio como engenheiro elétrico.
Em entrevista à imprensa [em 2017], em Barcelona, Prenafeta contou que seu avô foi informado pelo telegrafista do navio sobre a chegada de uma mensagem, sem remetente, mas que havia sido emitida de terra firme, proveniente de uma estação privada localizada na cidade de São Paulo. Num papel, Luís, o telegrafista, mostrou a Siles uma série de números (14” S – 47º 43’ 16” W 5-3, 0030).
Os dois perceberam tratar-se de uma coordenada e, possivelmente, uma data (“5-3” seria 5 de março e “0030” seria o horário de 00h30). Após pesquisarem a longitude e a latitude em um mapa, descobriram que as informações apontavam para Ilhabela, localidade por onde passariam em alguns dias.
O avô de Prenafeta e o telegrafista estranharam que as informações tinham como destino um ponto em alto mar, entre as ilhas de Búzios e Vitória, no arquipélago de Ilhabela, local com correntes marítimas mais tranquilas. Porém, aquele trecho estava fora da rota do navio e distante do porto de Santos, que seria sua próxima parada.
De acordo com Prenafeta, seu avô e o telegrafista passaram a observar o capitão Lotina. “No dia que chegou a mensagem, o capitão mostrou comportamento estranho. Estava calado, não conversava com os demais tripulantes, respondia monossilabicamente”, disse Prenafeta, relembrando as afirmações feitas a ele por seu avô, Gregorio Siles.
“Parecia estar com a mente voltada a algo exterior que não era o navio. Tinha o semblante preocupado”, completou. Ainda segundo Prenafeta, seu avô e o telegrafista também ficaram de olho no outro telegrafista do navio, chamado Paco, que horas depois, acabou levando a mensagem para o capitão. “Meu avô e o telegrafista desconfiaram que, naquele ponto, alguma embarcação de menor porte iria encostar no Príncipe de Astúrias”.
“No dia 4 de março”, continua, “um dia antes da tragédia, o capitão chamou meu avô para informar que iria utilizar o guindaste lateral do navio, e que, por isso, ele deveria fazer manutenção no equipamento, embora já o tivesse feito antes de sair de Barcelona, mas sem explicar os motivos”.
Prenafeta conta que, sem saber que o navio transportava o ouro, seu avô e o telegrafista, durante a madrugada, foram até o compartimento de carga e notaram que havia quatro caixas pesadas, sem identificação, não estavam registradas, e situadas estrategicamente próximas ao guindaste.
Na noite de 5 de março, data que eles supunham ser a da mensagem, eles perceberam que o navio mudou de rota e se dirigiu ao local das coordenadas. Os passageiros não perceberam que, aos poucos, o Príncipe de Astúrias diminuía a velocidade. “De repente, um pequeno barco encostou no navio, enquanto os passageiros e a maioria da tripulação se distraíam com o baile de Carnaval. Meu avô me contou que não era possível ver quem operava o guindaste, mas que eram duas pessoas. E muito menos que tipo de carga, pois chovia muito e a visibilidade era ruim. O guindaste realizou a manobra de descarga por quatro vezes. Mas, em pouco tempo, o barco deixou o local e seguiu sentido oposto”.
Prenafeta recorda que seu avô lhe contou que momentos antes de o barco aparecer, o capitão José Lotina sumiu do navio. “Eles foram até o camarote, arrombaram a porta e não o encontraram. Mas deram falta de uma maleta preta que ele sempre costumava levar”, descreve.
Ainda segundo relato de Prenafeta, seu avô e o colega combinaram de voltar ao compartimento de cargas no dia seguinte, para verificar se as caixas misteriosas continuavam lá. Mas o destino fez com que eles não pudessem averiguar. Horas depois, o Príncipe de Astúrias sucumbia no mar de Ilhabela.
Eram quase quatro horas da manhã e o capitão Lotina não havia aparecido. Indignado com o sumiço de seu superior, o imediato Rufino Onzain Urtiaga assumiu o navio e realizou as manobras, sentido porto de Santos. Antes de sumir e de o navio parar em Ilhabela, o capitão havia dado ordens para que o navio desviasse de sua rota para aquele local, também sem explicar os motivos.
Ainda segundo Prenafeta, com base em relatos de seu avô, subitamente, um raio iluminou a frente do navio, quando observaram uma imensa rocha a menos de 50 metros de distância. Não havia tempo para mais nada. Acontecia ali a maior tragédia marítima brasileira.
Gregorio Siles conseguiu se salvar após se atirar no mar. Passou dias à deriva agarrado a destroços do navio. Entre corpos em estado de decomposição e, juntamente com outro tripulante do navio que encontrou nas águas, conseguiu ser levado pelas correntezas até uma faixa de areia, hoje conhecida como praia da Caveira, na qual ficou aguardando socorro por três dias. Neste período, ele e o amigo enterraram três corpos que surgiram na praia. Conseguiram sobreviver pescando mariscos. Siles morreu na Espanha 34 anos depois.
O historiador e escritor grego Jeannis Platon, 80 anos, maior especialista do Príncipe de Astúrias no Brasil, diz suspeitar que o navio seria afundado propositalmente, para justificar o sumiço do ouro. Porém, o capitão José Lotina não contava que o navio afundaria em um acidente real, tirando a vida de centenas de pessoas.
“O local ideal para afundar o Astúrias seria próximo à costa de Mar del Plata, na Argentina, que, por ter mar calmo, possibilitaria que os passageiros e tripulantes pudessem se salvar. Assim, o seguro cobriria o prejuízo, como de fato foi feito posteriormente”, diz Platon. “Esse navio seria afundado de qualquer forma, pois não haveria como o capitão chegar ao destino final sem seu carregamento milionário”, suspeita.
O paradeiro de Lotina é desconhecido até hoje. “Muitos dizem que ele se matou com um tiro antes de o navio afundar. Mas nunca descobriram seu corpo. Outros dizem que semanas após o desastre, teria sido visto em Santos, no litoral paulista, cidade onde o navio faria escala. Mas a maior suspeita é de que ele saiu naquele barco e enterrou o ouro na ilha de Búzios para buscar posteriormente, assim que a poeira baixasse”.
Ainda de acordo com o pesquisador, todo o inquérito que investigou o navio perdeu-se em um incêndio, supostamente criminoso, na Receita Federal de São Sebastião, também no litoral norte de São Paulo, após ter sido remetido pela autoridade marítima do Rio de Janeiro nas primeiras investigações.
Platon, grego da ilha de Creta e residente no Brasil desde os 13 anos, realizou mais de 300 mergulhos e expedições no Astúrias, o primeiro deles em 17 de maio de 1974. Outras centenas de expedições foram feitas por mergulhadores de diversos países, milhões de dólares foram investidos em busca do ouro. Todas as tentativas foram em vão.
O navio está a cerca de 50 metros de profundidade, e até mesmo mergulhadores profissionais e experientes temem mergulhar por ali, devido à forte correnteza. “Posso dizer com certeza que ali é um dos lugares mais perigosos para se mergulhar no planeta”, afirma Platon, com a autoridade de quem já mergulhou em toda a costa brasileira.
Nas centenas de mergulhos que realizou, conseguiu recuperar utensílios, peças, cobre, prataria, lingotes de chumbo, entre outros objetos, que hoje estão expostos no Museu Náutico de Ilhabela. “Verifiquei que saquearam o navio e usaram até dinamite, na esperança de encontrar algo valioso. Se o lugar não fosse tão perigoso para mergulhar, certamente não existiria mais nada do navio por lá”.
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Mas o maior feito foi o encontro de uma das 20 estátuas que o navio transportava, após 75 anos submersa. Estava “degolada” e sem um braço. Jeannis não descansou enquanto não localizou a cabeça. “Decidi que só sairia dali após localizar o resto da estátua”. O braço esquerdo, porém, nunca foi localizado. “Foram 10 anos de dedicação e mergulhos com várias equipes e US$ 300 mil investidos”, orgulha-se. A estátua está exposta no Serviço de Documentação da Marinha, na ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, após passar por processo de restauração feito por arqueólogos da própria Marinha. As demais estátuas nunca foram encontradas. Assim como o ouro.
Em 2016, Jeannis Platon e Isidor Prenafeta se encontraram em Barcelona e visitaram o Museu Náutico da capital espanhola, onde está exposta uma maquete original do Príncipe de Astúrias. Ainda em 2016, Prenafeta veio ao Brasil para participar, junto com Platon, das homenagens feitas pela Marinha do Brasil pela passagem do primeiro centenário do desastre. Na ocasião, eles participaram de uma cerimônia de entrega de coroas de flores ao mar, para homenagear as vítimas do naufrágio.
O ator Herson Capri perdeu três dos cinco parentes que viajavam clandestinamente no Príncipe de Astúrias, fugidos da Primeira Guerra Mundial. Segundo ele, seu avô italiano Angelo Capri e seu filho de 13 anos conseguiram sobreviver. A mulher de Angelo e duas crianças não resistiram. Angelo estava na cabine junto com a mulher e as crianças. Renato, de 13, estava dormindo em outra cabine.
“Era madrugada de Carnaval, fim de festa. No navio, Renato acordou já com água na altura do joelho, no seu camarote, e saiu correndo para se salvar. Angelo e Sofia ouviram um barulho muito forte e sentiram um baque. Angelo disse que ia buscar os salva-vidas, abriu a porta e a água invadiu a cabine. Já no mar, meu avô agarrou uma criança que gritava ‘papa’ com sotaque espanhol, e ele a pegou pensando que podia ser uma das crianças dele, o filho de 6 ou 8 anos. Como era um bom nadador, nadou o resto da noite toda, com a criança nas costas, tentando se agarrar nas pedras para onde a correnteza o levava, mas não conseguiu por causa do limo. Ficou machucado nas mãos e nos braços. Ele dizia que chegou a enxergar algumas luzes muito fracas e muito distantes. Pela manhã conseguiu chegar numa praia. Verificou que a criança não era seu filho, ficou desesperado e tentou voltar para o mar na tentativa de resgatar alguém da família, mas os moradores da ilha o impediram. Depois soube-se que era uma criança argentina que estava com a família a bordo e cujo pai também teria se salvado, ou, em outra versão, a criança estava sozinha, filho de pais separados, estaria indo para Buenos Aires para ficar com a mãe”.
Segundo o ator, a família agradeceu por carta o salvamento da criança e ofereceu ajuda ao seu avô para o que ele precisasse no Brasil. “Ele teria confundido o menino na hora do salvamento porque o seu filho também tinha sotaque espanhol, pois eles moraram nas Antilhas durante alguns anos”.
Ainda de acordo com Capri, o adolescente Renato também se salvou nadando e, na praia, conseguiu reencontrar o pai. “Meu avô perdeu a esposa, três filhos (um bebê, um menino de 6 ou 8 anos, e uma menina de 15 anos) e quase toda a sua fortuna no naufrágio”, diz ele, com base nos relatos de seu tio Renato, o adolescente sobrevivente. Angelo acabou se radicando em Curitiba (PR) e depois seguiu para Ponta Grossa (PR).
O desastre com o Príncipe de Astúrias fez Herson descobrir que seu sobrenome, na verdade, é Capra, e não Capri. Atrás da história de seu avô, foi para Verona, na Itália, e conseguiu localizar o registro de nascimento na província de Sanguinetto, próximo a Verona, e seu registro no Exército.
Os documentos traziam o nome de “Angelo Capra”, com os mesmos nomes dos pais e mesma data de nascimento. “Para que a família pudesse ter passaporte italiano, tive que trocar todos os documentos, de todos, para Capra, inclusive os meus”.