25 ANOS DE PRISÃO

Réu por assalto em mansão de Bertioga tenta provar inocência há 4 anos

Alexsandro Cantuária foi condenado a mais de 25 anos de prisão por assalto, roubo e extorsão; vítimas reconheceram o réu pela cor dos olhos

Redação
Publicado em 06/06/2024, às 10h42 - Atualizado às 11h29

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Quadrilha invadiu casa em Guaratuba;  Alexsandro diz ser inocente do roubo em Caraguatatuba - Foto: reprodução/arquivo pessoal
Quadrilha invadiu casa em Guaratuba; Alexsandro diz ser inocente do roubo em Caraguatatuba - Foto: reprodução/arquivo pessoal

Alexsandro Cantuária de Souza, de 36 anos, casado, pai de duas meninas e dono de um quiosque em Guarujá, no litoral de São Paulo, se tornou réu por participação em um assalto a uma casa de luxo de Bertioga, no litoral de São Paulo, em junho de 2020. Mas, segundo a defesa, a única prova apresentada no processo é que ele foi reconhecido pelas vítimas, porque tem a cor dos olhos semelhante a um dos criminosos.

Em julgamento realizado em Bertioga, em 2021, o empresário foi inocentado por falta de provas, entretanto, o Ministério Público da cidade recorreu da decisão, e, em 2022, Alexsandro foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) a 25 anos de prisão por assalto, roubo e extorsão. O comerciante ficou seis meses preso e, hoje, responde em liberdade porque a defesa recorreu da decisão.

dono de um quiosque em Guarujá
Alexsandro é dono de um quiosque em Guarujá - imagem: reprodução arquivo pessoal

A reportagem teve acesso exclusivo ao Habeas Corpus de Alexandro no qual a defesa, orientada pelo advogado criminalista Henrique Perez Esteves, recorre da decisão em 3ª instância, para anular a condenação do cliente. O documento, que ainda será julgado em Brasília pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), detalha o ocorrido e como o réu "foi colocado na cena do crime de forma injusta".

O que aconteceu?

No dia 10 de junho de 2020, quatro homens armados invadiram uma casa de veraneio de um promotor de justiça, localizada no bairro Guaratuba, a cerca de 30 minutos do centro de Bertioga; eles fizeram a família refém enquanto obrigavam as vítimas a fazerem transações bancárias. Os quatros criminosos conseguiram fugir do local, em posse de diversos objetos, no carro da família. Segundo consta na investigação, a quadrilha havia usado uma outra casa de veraneio, em um condomínio vizinho, para pernoitar antes de cometer o crime.

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A investigação do caso ficou sob responsabilidade da antiga equipe da Delegacia de Bertioga. Em entrevista à imprensa, na época, o delegado responsável, atualmente aposentado, disse que havia conseguido desarticular a quadrilha e informou a identificação de dois suspeitos, por meio de uma investigação científica. “Tivemos um roubo num condomínio de luxo da cidade, cujo local deve ser preservado, e ali realizamos minuciosa perícia de DNA e impressões digitais e conseguimos identificar, num primeiro momento, dois elementos, sendo Ariel Henrique e André da Silva", disse, na ocasião.

Após identificar os dois primeiros envolvidos, a Polícia Civil informou que a inteligência conseguiu localizar o terceiro possível suspeito, que seria o Alexsandro. "Ele representa um dos elos do esquema de roubos à residência, inclusive, em busca e apreensão em sua residência, momentos antes de sua prisão, foi encontrada farta quantidade de objetos roubados das vítimas, máquina de cartão de crédito, dentre outros objetos que foram reconhecidos por algumas das vítimas", disse o delegado, então.

Ao associar Alexsandro à quadrilha, a autoridade policial enviou às vítimas uma foto antiga do empresário, por meio do aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp. Na ocasião, as vítimas reconheceram Alexsandro, com 70% de certeza,  por causa de seus  olhos verdes, semelhantes aos olhos de um dos assaltantes. Alexandro foi chamado à delegacia e de lá não voltou mais.

Possíveis falhas

A defesa de Alex, como é chamado por familiares e amigos, aponta vários erros no processo apresentado pela antiga equipe da Polícia Civil de Bertioga, e mantida pelo MP da cidade. O primeiro deles, a que o levou ser detido pela Polícia Civil, segundo consta no Habeas Corpus, é que duas das vítimas informaram ao delegado que os quatros criminosos estavam com máscaras, e que somente um deles tinha olhos verdes.

Mesmo sem que as vítimas comparecerem à delegacia da cidade, a autoridade policial iniciou o reconhecimento remotamente e enviou a foto de um homem, por WhatsApp, com as características citadas, e as vítimas confirmaram ser o homem da foto o autor do roubo. Entretanto, o homem reconhecido pelas vítimas era um integrante de uma facção criminosa e estava inserido na difusão vermelha da Polícia Internacional, a Interpol. Dois dias depois, a investigação enviou uma outra foto às vítimas, dessa vez,  uma foto antiga de Alex.

As vítimas analisaram a foto enviada pelo WhatsApp e mudaram a versão, afirmando, com 70% de certeza, ser Alex um dos homens que invadiram a residência da família para cometer o roubo, mais uma vez apenas pela cor dos olhos. Com o novo reconhecimento, a autoridade localizou e prendeu Alex na porta de casa.

Em audiência por videoconferência com as vítimas, Alex aparece ao lado de outros dois homens, quando são apresentados à vítima; o comerciante aparece segurando um papel com o número três. A mulher que teve a casa assaltada disse reconhecer Alessandro, mas não com 100% de certeza. “Eu diria 90%, mas eu só vi o olho, porque ele estava de gorro e máscara”, disse a vítima em depoimento.

Celular periciado

No dia e horário do assalto, Alexandro diz que estava com a família comemorando o aniversário de um parente, em Guarujá, e, depois, foi para casa dormir. Os celulares dele e de sua mulher foram apreendidos e os rastreadores indicaram que os aparelhos não saíram da cidade e que estavam a 50km de distância da mansão assaltada. Além disso, perícias foram feitas e nenhuma mensagem, ou ligação, associou Alex aos criminosos; até hoje, os celulares não foram devolvidos aos donos.

Impressões digitais

O terceiro erro, segundo o advogado de Alex, aponta que, na  investigação da autoridade policial, a perícia coletou centenas de impressões digitais na casa usada pelos criminosos para pernoitar antes do crime, na casa das vítimas e no carro roubado. Entretanto, nenhuma bate com as digitais do homem reconhecido pelas vítimas, a não ser as digitais de Ariel e André.

A reportagem analisou todas as conclusões periciais do caso realizadas pelo Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (Iirgd), da Polícia Civil, e, em um dos documentos, o papiloscopista responsável pelo laudo conclui não ter encontrado nenhuma digital de Alexandro na cena do crime, tampouco nos objetos roubados.

Um dos laudos diz: “Os fragmentos de impressões papilares [digitais dos criminosos] fotografados foram confrontados com os datilogramas das pessoas elencadas como padrões de confronto [Alexsandro], porém não foram constatadas a existência de datilogramas coincidentes”.

Quatro meses após o crime, a perícia da Polícia Civil concluiu que as digitais que estavam na mansão eram de um homem identificado como Felipe Benício, que também tem olhos verdes, e não era nenhum dos dois identificados pelas vítimas.

A perícia do Iirgd, por sua vez, confirmou que as digitais coletadas no crime coincidiam com as de Felipe, em outubro de 2020; em novembro, a autoridade policial foi informada oficialmente sobre a identificação do dono das digitais e assinou o documento, já em fevereiro de 2021, o órgão encaminhou novamente o laudo pericial identificando a digital de Benício.

Entretanto, a defesa diz que o laudo afirmando não ter digitais de Alexandro na cena do crime e o laudo identificando o possível terceiro envolvido no assalto, por meio das digitais, foram negligenciadas. “Por que que essas perícias tão importantes foram negligenciadas e não foram trazidas aos autos principais? Documentação essa, repito, não juntada ao processo. Não sabemos se dolosamente ou culposamente, mas que a autoridade policial teve acesso e sabia da inocência do Alexandre, sabia”, disse Henrique Perez em entrevista à imprensa.

Felipe Benício foi interrogado pela polícia ainda em 2020. Na época, a participação dele no assalto ao condomínio foi descartada porque, segundo a polícia, ele estava preso por outro crime. A defesa de Alexsandro, no entanto, conseguiu provar que Felipe Benício estava em liberdade, mas diz que ele não foi investigado pelo crime. "Ele não estava preso na época dos fatos. Portanto, ele poderia, sim, ter praticado esse crime, e sequer a autoridade policial chamou as vítimas para fazer um novo reconhecimento”, ressaltou o advogado.

Alexsandro x quadrilha

O Habeas Corpus montado pela defesa de Alex diz ainda que houve um assalto à residência no bairro Riviera de São Lourenço, também em Bertioga, e que Ariel foi apontado como autor do crime. Segundo o relatório de investigação da polícia, o carro de Ariel apresentou defeito dentro do bairro e ele teria dito ao segurança particular que iria em busca de um amigo mecânico para ajudar no conserto. 

Segundo o relatório, esse amigo teria entrado no bairro com um veículo Renault Oroch e, ao consultar a placa, o carro seria de Alexsandro. Por isso, a autoridade policial fez uma conexão entre o empresário e Ariel.

Entretanto, a defesa conseguiu provar que o empresário nunca esteve na Riviera na data citada e que a investigação era inverídica ao obter um ofício enviado pela administração do bairro, informando que o veículo Renault Oroch, que pertenceria a Alex, havia entrado na Riviera de São Lourenço em abril de 2020, dois meses antes. Durante a audiência, a autoridade policial reconheceu o erro da investigação e pediu perdão pela elaboração do relatório.  

Além de Alexandro, a justiça incriminou Ariel, que foi localizado e preso, e André, que morreu antes de ser preso. Durante a audiência, Ariel, que é autor confesso do crime em Guaratuba, disse em depoimento não conhecer Alexandro. Ariel afirmou, ainda, que em momento algum pediu ajuda do comerciante no bairro da Riviera de São Lourenço. “Não conhecia ele não. Nunca vi ele na minha vida”, disse o detento.

Alex pede justiça

A defesa de Alexandro concluiu haver violação dos direitos ao devido processo legal e à ampla defesa e recorreu da decisão em terceira instância, pedindo a anulação do julgamento e reinício do processo desde a primeira instância, conforme prevê o Código de Processo Penal.

O que dizem os citados

Ministério Público

O Ministério Público informou à reportagem que Alexsandro Cantuária de Souza, inicialmente absolvido, foi condenado posteriormente a 25 anos, 10 meses e 10 dias de prisão, após recurso do Ministério Público. A condenação de Alexsandro se baseou em provas como digitais na cena do crime e na presença de testemunhas.

Segundo o MP, apesar da presença de digitais de outro homem (Felipe Benício), a Promotoria de Justiça de Bertioga acredita que Alexsandro era o quarto assaltante e não o absolve do crime. Leia a nota do MP na íntegra.

"A Promotoria de Justiça de Bertioga esclarece que, referente processo criminal que tramitou perante a 1ª Vara Judicial de Bertioga, da análise do processo judicial, verifica-se que não assiste razão à insurgência.

No bojo daqueles autos, Ariel Henrique Alvarez, André da Silva Fagundes (falecido ao longo do processo) e Alexsandro Cantuária de Souza foram denunciados como incursos no artigo 288, parágrafo único; artigo 157, §2º, incisos II, V e VII, e §2º-A, inciso I, por três vezes, na formado artigo 70, parte final (concurso formal impróprio); e no artigo 158, §1º e 3º, por duas vezes, tudo na forma do artigo 69, todos do Código Penal.

Sobreveio sentença prolatada pelo Juízo da 1º Vara Judicial de Bertioga julgando parcialmente procedente a pretensão punitiva deduzida na denúncia, absolvendo o acusado Alexsando Cantuária de Souza e condenando o corréu Ariel Henrique Alvarez.

O MPSP interpôs recurso de apelação, com o objetivo de reformar a sentença e condenar também Alexsandro Cantuária de Souza. O reú Alexsandro havia sido absolvido, no entanto, após recurso do MPSP, a Justiça condenou o acusado à pena de 25 anos, 10 meses e 10 dias de reclusão, em regime inicial fechado.  

Houve a realização de exame pericial papiloscópico, cujo resultado não identificou as digitais do réu Alexsandro, mas sim apontou a presença das digitais dos corréus  na cena do crime, além de Felipe Benício Ramos. O fato de eventualmente ter se identificado a presença das digitais de Felipe na cena do crime não afasta a responsabilidade criminal de Alexsandro.

A denúncia imputa a prática dos crimes patrimoniais aos acusados Ariel, André e Alexsandro, na companhia de outro indivíduo até então não identificado. Assim, a eventual presença das digitais de Felipe Benício Ramos na cena do crime denotam ser ele esse quarto indivíduo não identificado, que perpetrou as infrações penais na companhia dos réus.

A Promotoria de Justiça de Bertioga determinou, então, a expedição de ofício à Delegacia de Polícia de Bertioga para adoção das providências pertinentes, notadamente no que diz respeito à apuração de participação de Felipe Benício Ramos nos crimes que são objeto da ação penal. A determinação foi cumprida no dia 24/09/2020.

Cumpre pontuar que há robustos elementos de prova apontando a autoria dos crimes a Alexsandro Cantuária de Souza, conforme se observa pelas razões expostas no recurso de apelação interposto pelo MPSP em primeiro grau, no parecer apresentado pela Procuradoria de Justiça e no acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

A Promotoria de Justiça de Bertioga informa, ainda, que recebeu mais de uma reclamação a respeito dos trâmites deste processo. Todas foram analisadas de forma célere e criteriosa, restando-se o arquivamento, inclusive por parte da E. Corregedoria do MP-SP".

Tribunal de Justiça de São Paulo

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) informou que não emite nota sobre questões jurisdicionais. Em resposta à reportagem, o TJSP disse que os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. A nota finaliza informando que: "Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente".

SSP

Perguntada sobre a acusação da defesa de Alexandro contra a antiga equipe da delegacia de Bertioga, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) informou que a Corregedoria da Instituição instaurou uma apuração preliminar e investiga todas as circunstâncias dos fatos. Segundo a pasta, o caso foi relatado à Justiça, que confirmou as provas produzidas no inquérito policial.

Acusados

A reportagem tentou contato com o advogado que já defendeu Felipe Benício em outros processos, entretanto, o advogado informou que não tem mais contato com o antigo cliente. A reportagem não localizou a atual defesa do acusado; a defesa de Ariel também não foi localizada pela reportagem.

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