Além da jararaca-ilhoa, o mar da região da ilha da Queimada Grande, no litoral de SP, detém a barreira de coral mais ao sul do oceano Atlântico
Muito mais do que um simples ponto no horizonte do litoral sul de São Paulo. A ilha da Queimada Grande – ou “Ilha das Cobras”, como é popularmente conhecida – é uma pérola da biodiversidade brasileira em um mar repleto de curiosidades. Seu território intriga com histórias de incêndios, espécies peculiares, naufrágios, uma teoria de Charles Darwin, uma barreira de coral e até um tesouro perdido.
O Instituto Butantan elencou sete fatos curiosos sobre esse local misterioso, considerado um dos mais perigosos do planeta, além de lar da famosa jararaca-ilhoa (Bothrops insularis). Viaje nesta aventura com a gente.
Batizada oficialmente de Queimada Grande, a ilha fica entre as cidades de Peruíbe e Itanhaém, no litoral sul paulista, a 35 quilômetros de distância da costa. Classificada como Unidade de Conservação Federal, encontra-se sob gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e só pode ser visitada por pessoas devidamente autorizadas pelo órgão.
Conhecida popularmente como Ilha das Cobras, ela é a segunda do planeta com a maior concentração do réptil por metro quadrado, além de abrigar a Bothrops insularis, espécie endêmica de jararaca, que não é encontrada em outra parte do planeta.
A cidade do Rio de Janeiro também possui a sua própria ilha das Cobras – essa, situada na baía da Guanabara –, e confusões costumam ser comuns. Diferentemente da Queimada Grande, que tem a denominação por “apelido”, a versão carioca é, de fato, a “real oficial”.
Até o início do século XX, a prática de atear fogo na vegetação da ilha, feita por moradores da região, pescadores e agentes do próprio estado, era bastante comum. O objetivo era “espantar” as inúmeras serpentes que ali viviam. Muitas vezes, esses incêndios atingiam proporções gigantescas e podiam ser claramente avistados do continente – daí o nome Queimada Grande.
A hipótese defendida pelos cientistas, para justificar as diferenças e semelhanças entre a jararaca-ilhoa e a jararaca “comum” (Bothrops jararaca), é que elas compartilham de um mesmo ancestral. Essa ideia é baseada na teoria da evolução por seleção natural, elaborada pelo naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882).
De acordo com a hipótese, há aproximadamente 11 mil anos, quando grandes massas de gelo derreteram e cobriram de água partes de terra que, até então, se ligavam ao continente, uma parcela da população “original” de jararacas do litoral brasileiro acabou isolada em ilhas, sob condições de sobrevivência bastante distintas das que conheciam até então.
Com o passar do tempo, a serpente foi acumulando mutações, que podem ou não ter sido vantajosas para sua continuidade, e resultaram em uma “nova” jararaca. Na ilha da Queimada Grande, onde não há disponibilidade de roedores (principal presa da jararaca do continente), predominaram aquelas com o corpo mais delgado e a cauda mais longa – que devem favorecer sua movimentação sobre a vegetação –, assim como a cabeça maior – que pode facilitar a captura e deglutição de pássaros, seu principal alimento.
O isolamento da ilha também pode ter favorecido o surgimento de uma espécie endêmica de anfíbio: a Scinax peixotoi – um sapo minúsculo, de 18 a 25 milímetros, encontrado em bromélias. Com olhos protuberantes, dorso amarronzado e manchas escuras na lateral do corpo, o animal foi descrito no final dos anos 2000 por pesquisadores do Instituto Butantan e das universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e Estadual Paulista (Unesp).
Além das espécies endêmicas, a ilha abriga outros animais – inclusive uma serpente –, que também são encontrados no continente. A tímida dormideira (Dipsas albifrons), muito mais difícil de ser observada que a jararaca-ilhoa, reforça a herpetofauna do local. De hábito noturno, costuma rastejar pelo chão ou sobre a vegetação em busca de lesmas para se alimentar. Apesar de aparentemente possuir algumas características distintas, a dormideira da Queimada Grande não é considerada uma espécie diferente da encontrada no continente.
Também são destaques da biodiversidade da ilha a barata silvestre (Hormetica laevigata), facilmente avistada – e “ouvida” – com o cair da noite; o belíssimo gafanhoto-azul (Meroncidius sp.); e o atobá-pardo (Sula leucogaster), que, com sua envergadura imponente, proporciona lindos rasantes.
As águas azuladas e cristalinas que margeiam a Queimada Grande costumam atrair muitos mergulhadores. Recentemente, pesquisadores fizeram uma descoberta que ajuda a explicar a abundante vida marinha encontrada na região: a presença de uma barreira de coral de 75 mil metros quadrados a 12 metros de profundidade.
Identificado como o recife de coral mais ao sul do Oceano Atlântico, a formação rochosa foi considerada uma descoberta inusitada, já que estruturas como essa geralmente são encontradas em latitudes mais próximas à Linha do Equador. Até então, o Banco dos Abrolhos, na Bahia, era o limite sul de distribuição dos recifes de corais no Atlântico.
Outra peculiaridade é o fato de o recife da Queimada Grande ser composto apenas por um único tipo de coral – o Madracis decactis. A maioria dos recifes já encontrados no mundo é formada por várias espécies de corais.
A presença de três navios naufragados na região também é um chamariz para os mergulhadores. À esquerda da extensão da ilha, para quem chega da costa, por exemplo, encontra-se o vapor Rio Negro. A embarcação naufragou em julho de 1893, após se chocar contra a costa da ilha por causa de uma intensa cerração que prejudicou a visibilidade da tripulação.
Quatro décadas depois, em 1993, foi a vez de o vapor Tocantins naufragar a poucos metros dali, enquanto seguia viagem rumo a Manaus. Em uma noite de agosto, uma espessa cerração desceu, tornando a visibilidade praticamente nula. Assim como seu predecessor, o comandante não se deu conta da existência da ilha e acabou encalhando. Logo após o acidente, o mar começou a virar e lançou o vapor contra as rochas da Queimada Grande.
Pouco mais distante, a cerca de três quilômetros da costa da ilha, repousam os destroços do vapor Araponga, que naufragou após colidir com um pequeno cargueiro na madrugada do dia 12 de junho de 1943. Recentemente, em 2019, um novo naufrágio próximo à ilha das Cobras ganhou notoriedade na mídia, quando um barco ocupado por seis pescadores virou durante uma forte tempestade, no meio da noite.
Após nadar por horas até o amanhecer, quatro homens conseguiram alcançar as rochas da Queimada Grande. Eles passaram três dias se alimentando de bananas verdes e se hidratando com o que conseguiam captar de água da chuva, até serem resgatados por uma lancha de mergulhadores. Infelizmente, outros dois ocupantes da embarcação não conseguiram se salvar e faleceram.
Dentre as inúmeras lendas que envolvem a Queimada Grande, uma das mais conhecidas diz respeito à existência de um tesouro, que pode ter sido escondido na ilha há mais de 500 anos. Como toda boa história que corre na boca pequena, é difícil precisar quando ela surgiu e como ocorreu.
De acordo com uma série documental lançada pelo Discovery Channel, em 2015, a tal fortuna foi de um explorador europeu responsável por saquear o ouro de diversas regiões da América Latina. Há, também, quem diga que os espécimes de jararaca foram colocados na ilha de caso pensado, justamente para proteger o valioso tesouro, afastando qualquer pirata ou aventureiro que cogitasse explorar o local.
O curioso é que, caso fosse verdadeira, a estratégia teria surtido um efeito contrário. Classificada atualmente como criticamente ameaçada de extinção, a Bothrops insularis encontra-se em declínio, muito por causa da ação de biopiratas e colecionadores, que pagam elevadas quantias para ter um exemplar da espécie.
Com informações de Instituto Butantan