TRISTE SAGA

“Não conseguimos cumprir o último desejo dele”, lamenta tia de turista morto em Guarujá

Parente de jovem morto por afogamento na Praia Branca diz que família enfrentou série de burocracias e malfeitos que os impediu de cremar o corpo

Thiago S. Paulo
Publicado em 27/09/2023, às 14h04 - Atualizado às 15h16

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Corpo foi encontrado na Prainha e levado para Bertioga (acima à esq.), Nicolas aos 15 anos com a tia Bianca e aos 18 - Imagem: Acervo Familiar / Aconteceu em Bertioga
Corpo foi encontrado na Prainha e levado para Bertioga (acima à esq.), Nicolas aos 15 anos com a tia Bianca e aos 18 - Imagem: Acervo Familiar / Aconteceu em Bertioga

Familiares do turista Nicolas Rocha Araújo, morto tragicamente por afogamento no mar de Guarujá, afirmam que enfrentaram uma segunda tragédia ao tentar cremar o corpo do jovem. Engolfado por uma forte correnteza, Nicolas se afogou no mar da Praia Branca há pouco mais de uma semana, no domingo (17). Quase foi salvo por um surfista, mas sumiu nas águas. Dezenas de banhistas testemunharam, impotentes, o acidente.

O corpo do jovem de 18 anos foi encontrado por guarda-vidas três dias depois, na quarta-feira (20) e reconhecido pela mãe, tia e avô no mesmo dia. No entanto, eles dizem que foram envolvidos em uma série de burocracias e malfeitos ao tentar liberar o corpo de Nicolas para a cremação e, por isso, se viram obrigados a enterrá-lo.

“Quando estava vivo, ele teve uma conversa com os pais dele e deixou muito claro que, caso acontecesse uma fatalidade, não gostaria de ser enterrado. Ele queria ser cremado ", relatou em entrevista nesta terça-feira (26) a analista de qualidade de 27 anos Bianca Rocha Carvalho, tia de Nicolas.

“A gente está destruído porque [o afogamento] foi uma fatalidade, a gente entende que foi uma fatalidade, só que foram erros consecutivos que poderiam ter amenizado a dor da minha família”, acrescenta.  Morador de Itaquaquecetuba, Nicolas seria cremado na capital paulista, onde mora parte da família, conta ela.

Bianca afirma que mesmo abalados pela perda, ela, o avô e a mãe de Nicolas precisaram resolver o traslado do corpo em três cidades do litoral. “O corpo do meu sobrinho foi encontrado na praia do Guarujá, perto de onde ele se afogou. O boletim de ocorrência foi aberto em Bertioga e mandaram o corpo para [o IML de] Praia Grande, que fica em torno de 1h20 de distância de onde ele foi localizado.

Grávida de cinco meses, a mãe do jovem passou mal durante o processo, explica Bianca. “Eu pedi para minha irmã subir para São Paulo por conta da gestação dela”. Ainda abalada, a mulher de 32 anos preferiu não conceder entrevista.

Jovem em fotos familiares com mulheres sorridentes
Nícolas e sua mãe, Diane (à esq.) e o jovem com a tia Bianca. "Perdemos nosso príncipe"

Triste saga  

Legalmente, mortes por afogamentos como a de Nícolas são consideradas mortes violentas, ao lado de óbitos por suicídio ou homicídio. Nestes casos, como o cadáver pode constituir prova, para cremá-lo, familiares precisam de autorização expressa de autoridades policiais, médicos legistas e da Justiça. O mesmo não se aplica ao sepultamento do corpo, que pode ser exumado.

“O legista deu laudo autorizando a cremação, o delegado também deu laudo autorizando a cremação, só que eu tive dificuldade com a Justiça”. Relata Bianca, antes de acrescentar. “Na quarta-feira (20), eu fui ao fórum de Guarujá. Pedi pelo amor de Deus pra que me ajudassem [com a autorização judicial]. Eu gritava, eu chorava, mas ninguém conseguiu me ajudar”, narra ela com a voz embargada.

“Minha advogada aqui de São Paulo fez a petição na [1ª] Vara Criminal de Guarujá, a cidade onde foi localizado o corpo. Eles fecharam o processo, falando que não era lá. Ela teve que abrir um novo processo na mesma cidade, para conseguir a liberação do juiz para a cremação”.

Também na quarta, enquanto aguardava autorização judicial, Bianca diz que foi informada no IML de Praia Grande que, com os termômetros do litoral batendo os 35°C, o corpo de Nicolas ficaria fora da refrigeração. “Eles não tiveram o cuidado de colocar o corpo do meu sobrinho dentro da refrigeração para preservar um pouco mais o corpo. Falaram que tinham muitas ocorrências e que ele ficaria fora da geladeira”.

“Nosso medo era o corpo do meu sobrinho ser enterrado como indigente, porque eles deram a entender que não iam ficar com o corpo no IML", relata a analista. A reportagem aguarda esclarecimentos da Secretaria de Segurança Pública, que responde pelos IMLs do estado.

Pra piorar, um termo incomum em declarações de óbito por afogamento na declaração de óbito do jovem envolveu a família em um turbilhão de informações equivocadas. “Na declaração de óbito do Nicolas, o legista colocou afogamento e colocou também ‘asfixia mecânica’”, diz Bianca - que avalia.

“E, por conta dessa informação, asfixia mecânica, que normalmente é utilizada em casos de homicídio, que é quando a pessoa é enforcada, o corpo não pôde ser cremado. Eu sou muito leiga nessa parte e não tenho como dizer que o laudo está errado. Mas acredito que impossibilitou da gente seguir com o processo de cremação”.

Print de parte de declaração de óbito com termo ''asfixia mecânica''
Trecho da declaração de óbito de Nicolas. Tia do jovem  acredita que termo ''asfixia mecânica'' no documento pode ter atrapalhado processo de cremação

Ela afirma que, ainda na quarta-feira (20), um crematório na capital se negou a cremar o corpo de Nicolas por causa do termo na declaração de óbito. Procurado, o crematório informou que a negativa se relaciona à exigência de autorização judicial, obrigatória em casos de mortes violentas.

Em entrevista, um representante do crematório disse que o corpo poderia ter permanecido na refrigeração do próprio crematório, mediante o pagamento de taxas, até que fosse expedida a autorização da Justiça. Bianca afirma que a família não foi informada da possibilidade.

No escuro, enlutados e em desespero, familiares resolveram enterrar o jovem. Nicolas foi sepultado na tarde de quinta-feira (21) no Cemitério São Pedro, na capital paulista. “A gente se sentiu forçada a enterrá-lo. Enterramos contra a nossa vontade. Contra a vontade da minha irmã. A gente enterrou ele e já estava com um cheiro muito forte. Sofremos muito durante o velório”, conta, segurando as lágrimas, a analista.

Ela afirma que não cumprir o último desejo de Nicolas abalou ainda mais a mãe dele e os parentes.

Eu estou me sentindo com raiva, impotente, porque eu me sinto em dívida com ele. A gente perdeu o amor da nossa vida. Era um menino fantástico. O sonho dele era trabalhar muito pra dar uma vida mais confortável pra família dele. Eu acho que todo mundo deveria ter conhecido o Nicolas porque é um menino maravilhoso. A gente já o perdeu, sabíamos que o desejo dele era ser cremado e a gente não conseguiu cumprir”.

Na sexta-feira (22), um dia depois do enterro, uma juíza da 1° Vara Criminal de Guarujá autorizou a cremação do corpo de Nicolas. Bianca afirma que só teve acesso à autorização judicial na noite de ontem (26). A família, conclui ela, avalia exumar o corpo do jovem e cremá-lo. 

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