Entre telefonemas, discursos e mobilizações, o casal foi peça-chave em um movimento coletivo que mudou o destino de Bertioga
O sonho de transformar o pacato distrito de Bertioga em uma cidade independente de Santos, no litoral de São Paulo, foi um processo longo e repleto de lutas, marcadas por embates políticos e mobilização popular. Entre os protagonistas dessa jornada estão Gerônimo de Souza Lobato e Eunice Olsen Lobato.
Gerônimo, vice-presidente da comissão organizadora da emancipação, recorda as dificuldades enfrentadas e a emoção do dia 19 de maio de 1991, quando o “sim” nas urnas selou a elevação de Bertioga à condição de município. “Foram muitos percalços; tinha muita gente contra. Isso só nos deu mais força para continuar”, relembra.
Já Eunice, secretária da comissão, teve atuação decisiva. Viajou a Brasília, discursou no Senado Federal e redigiu documentos decisivos para o processo. “Corremos atrás de tudo. Falei de emancipação no Senado”, diz ela. Orgulhoso, Gerônimo completa: “Ela foi a mão que escreveu a história”.
Apesar da legislação federal dificultar a emancipação de distritos — exigindo arrecadação equivalente a cinco milésimos dos impostos estaduais —, Eunice argumenta que já via em Bertioga três forças que garantiriam a viabilidade econômica futura, como a Usina de Itatinga, royalties do petróleo e a nascente Riviera de São Lourenço.
Entre os nomes lembrados com carinho, destaca-se o do deputado estadual Maurício Najar, autor do projeto de lei na Assembleia Legislativa que possibilitou o plebiscito. “Esse homem foi o nosso herói”, diz Eunice. Um momento marcante relembrado pelo casal foi a definição da data do plebiscito. Eunice conta que a prefeitura de Santos havia marcado uma reunião itinerante no Sesc-Bertioga, e os emancipacionistas elaboraram faixas e cartazes pró-emancipação e distribuíram por todo o percurso desde a rodovia Rio-Santos até a entrada do Sesc.
Neste dia, ela estava no Tribunal Regional Eleitoral, no aguardo da decisão sobre a data. Licurgo Mazzoni, presidente da comissão, foi para a reunião, e o marido, Gerônimo, ficou em casa, ao lado do telefone, único meio acessível para receber a informação. Quando ele recebeu a notícia, correu para o Sesc para avisar Licurgo e disse: “Eunice acabou de ligar avisando que está marcado plebiscito para o dia 19 de março”. Nesta hora, segundo contam, Licurgo pegou o microfone e divulgou para todos. “Era coisa de Deus, estava escrito nas estrelas”, diz Gerônimo emocionado.
Foram impressos 5 mil folhetos para divulgar o plebiscito. Muitos moradores disponibilizaram carros e ônibus para garantir o transporte dos eleitores. “O Eroles foi um deles, mandou cinco ônibus com motorista”, conta Gerônimo. Às 10h da manhã do dia 19 de maio, o quórum já estava atingido. Cada votante recebeu um diploma simbólico: “Dia 19 eu votei no sim”.
Quando enfim, viu o sonho realizado, Gerônimo afirma que chorou a noite inteira e lembra que, então, surgiu um pensamento: “Não havia planejamento para após o 19 de Maio e nos perguntamos - 'e agora o que vamos fazer'? A história para nós terminou”, diz ele, que via nas crianças da cidade seu maior motivo para lutar por um futuro melhor.
Apesar da vitória, o casal lamenta a falta de reconhecimento. “A maioria nem sabe que aqui é a casa dos emancipadores”, afirma Eunice. Eles guardam até hoje documentos originais, atas, dedicatórias de políticos como Orestes Quércia e Luiz Inácio Lula da Silva, e até um cheque de 30 mil cruzeiros que nunca foi utilizado. “A honestidade campeava entre nós”, diz Gerônimo. O casal planeja doar todo o acervo à Câmara Municipal de Bertioga, como legado para as futuras gerações.
As tentativas de emancipação de Bertioga começaram ainda em 1956, mas a população rejeitou o projeto. Em 1972, a proposta naufragou em meio à intervenção militar em Santos. A mobilização ressurgiu em 1979 com uma reunião no restaurante Flávio’s, reunindo comerciantes e líderes locais. Entre eles, estavam Pérsio Dias Pinto, que mais tarde transformou-se no principal líder do processo, além de Adilson Pires, José Toledo, Licurgo Mazzoni, José Flávio Romero, Ney Moura Nehme, Pacheco Ferreira de Sá, Osvaldo Biel, e Fioravante de Maria.
Em 1985, foi fundado o Movimento de Autonomia e Emancipação de Bertioga. A iniciativa perdeu força em 1986, mas resistiu com quatro líderes: Licurgo Mazzoni, Pérsio Dias Pinto, Gerônimo e Eunice Lobato. Com a Constituição de 1988, o movimento ganhou novo fôlego. Em 1989, o plebiscito quase foi realizado, mas foi barrado por uma manobra da prefeitura de Santos que alterou as divisas do distrito. A Comissão Organizadora, no entanto, conseguiu provar a ilegalidade da medida, reestabelecendo o processo.
A comissão era integrada, também, por Antônio Duarte, Antônio Purita, Irene Vaz de Pinto Lyra, Pérsio Dias Pinto, Abelardo de Araújo Barros, os conselheiros José Nunes Viveiros (Zeca do Gás), Paulo Sérgio Martinez e Sérgio Pastori, além de mais 129 fundadores.
Em 19 de maio de 1991, houve o novo plebiscito. Dos 3.925 votos, 3.698 foram favoráveis à emancipação. A vitória foi esmagadora: 99% votaram pelo sim. Bertioga foi oficialmente transformada em município em 30 de dezembro do mesmo ano e reconhecida como Estância Balneária no dia seguinte.