Em entrevista, educadora e militante dos direitos das mulheres se pronuncia sobre assassinato a facadas de Cristiane Duarte e sobre o caso de Mari Ferrer; o que é violência contra a mulher? Os agressores, como o que matou Cristiane a facadas e o que teria estuprado Mari Ferrer, são monstros? Qual a responsabilidade da sociedade? E por que um alerta vermelho é necessário?
Ao longo desta semana, ao menos dois casos de patente violência contra as mulheres tiveram ampla projeção local ou nacional. Na noite da última segunda-feira, 2, em Bertioga, no litoral paulista, Cristiane Duarte, uma jovem mulher de 19 anos foi assassinada a facadas. O principal suspeito é o ex-marido da vítima, um homem de 29 anos, atualmente foragido. Segundo relatos de pessoas próximas, o homem batia na jovem constantemente, era possessivo e não admitia perder o controle sobre a jovem. O caso indignou os moradores da cidade e do litoral paulista.
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O caso Mariana Ferrer, jovem de 23 anos que alega ter sido vítima de estupro em 2018, repercutiu nacionalmente quando o julgamento terminou com a absolvição de André de Camargo Aranha, 43 anos, réu pelo estupro da moça. Além da absolvição, o vídeo da seção judiciária em que Mariana é humilhada pelo advogado do réu, com a conivência de outros três homens participantes da audiência, apagou com gasolina o fogo da indignação.
Em entrevista concedida nesta quinta-feira, 05, ao Sistema Costa Norte, a professora Laura Cymbalista, de 41 anos, ativista da educação e dos direitos das mulheres, disse que não só é possível, como é necessário relacionar os dois casos – e muitos outros – na chave da violência contra a mulher.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E FEMINICÍDIO
No caso de Cristiane, morta a facadas por um ex-companheiro que não admitia a separação, a professora tipifica o crime como feminicídio, e explica o motivo.
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Laura Cymbalista | Foi a violência psicológica e a violência física no seu extremo que gerou a morte de Cristiane. Deixando duas crianças sem mãe, uma família que perdeu a filha, amigos que perderam a amiga, e ela com uma vida toda pela frente. E isso, por mais triste e revoltante que seja, é extremamente aceito na nossa sociedade até hoje.
Em seguida a ativista distingue assassinato de feminicídio. Segundo ela, todo feminicídio é assassinato, mas nem todo assassinato é feminicídio.
Laura Cymbalista | O femicídio é o assassinato de mulheres. Diz respeito a uma morte, a um assassinato que ocorreu pelo único motivo de a vítima ser mulher. Essa jovem, a Criatiane, foi assassinada porque ela era mulher. Porque o antigo companheiro se sentia dono dela, se sentia autorizado, legitimado socialmente, a tirar a vida dela, por não aceitar que essa mulher tinha escolhas, que essa mulher podia definir o sentido da sua vida, que poderia escolher inclusive não ficar mais com ele, não viver uma relação violenta, e podia escolher ter liberdade, ter dignidade e sair da violência.
A militante relata sua indignação com o caso de Cristiane e de Mariana Ferrer os quais, diz ela, estão longe de serem casos isolados.
Laura Cymbalista |Quando eu li as reportagens sobre o assassinato dessa jovem, sobre o feminicídio dessa jovem, primeiro me veio uma revolta e uma tristeza muito grandes, porque a gente não aguenta mais ler, não aguenta mais conviver com essas violências. A gente não aguenta mais ter que lidar com histórias que se repetem há tanto tempo e isso diz muito sobre o feminicídio e sobre a violência contra as mulheres.
Vide também o caso, Marri Ferrer que nós estamos vendo: A Justiça, falando pra uma moça que foi estuprada, com muitas provas, o que é difícil num caso de estupro e o homem foi inocentado, por falta de provas.
O AGRESSOR É UM MONSTRO?
A ativista critica duramente a caracterização como monstros dos sujeitos que cometem atos de violência. Segundo ela, isso faz com que a violência contra as mulheres seja percebida como exceção quando, na realidade, é a regra.
Laura Cymbalista | A gente tem que parar de achar que o agressor, que o assassino [de mulheres], são pessoas desiquilibras, não são. É aquela pessoa que toma cerveja com a gente no bar, que tá na fila ali na padaria. Não é uma pessoa tresloucada. Esse debate sobre a degeneração psicológica, ‘esse cara é um monstro! É uma pessoa desiquilibrada.’ Quantas vezes a gente ouve isso? Na verdade, o debate que as feministas fazem é no sentido de mostrar para a sociedade que o agressor, o estuprador, o agressor em potencial, pode ser qualquer um. Pode ser qualquer pessoa que conviva com a gente. Não é uma pessoa maluca que agride a sua mulher, não é uma pessoa maluca que se aproveita da mulher, coloca coisa na bebida da mulher pra estuprá-la, não é uma pessoa degenerada, louca que esfaqueia a sua mulher. Isso é fruto dessa ideologia e dessa construção social que legitima o uso da violência pra fazer com que a mulher ocupe esse lugar de ser inferior.
Nós temos muito casos de feminicídio, muitos mesmo”, prossegue a educadora. “É assustador e não são de [cometidos por] pessoas desiquilibradas. Então nos temos que parar de olhar para essas histórias pela lente do desequilíbrio, e nos perguntarmos o que construiu essa pessoa, o que que aconteceu com ela que sedimentou esse caminho pra gente chegar nesse desfecho?
A RESPONSABILIDADE DA SOCIEDADE
Segundo a ativista, a violência contra as mulheres, em seus mais variados graus e matizes, não se configura em casos isolados como os dois desta semana. Antes disso, esta violência é estrutural, ou seja, está enraizada no modo de ser das pessoas e no modo de operação das instituições.
Laura Cymbalista | A violência contra a mulher está assentada em estruturas muito arraigadas, muito entranhadas na nossa sociedade. Estruturas que são machistas e que constroem uma ideologia que se reflete no quanto as mulheres ganham de salário, se reflete na exploração do trabalho doméstico, se reflete na cultura do estupro, se reflete na violência doméstica e se reflete no feminicídio.
Embora o peso da ação individual não possa ser desprezado, relata Cymbalista, as inúmeras práticas de desvalorização das mulheres são construídas socialmente e devem ser socialmente destruídas.
Existem estruturas muito arraigadas, muito fortes, muito presentes, na nossa sociedade que constroem essa ideia de que as mulheres são seres humanos de segunda categoria, de que as mulheres não tem uma série de direitos, de que as mulheres não têm direito à sua liberdade, à sua autonomia, à sua escolha.
ALERTA VERMELHO
Laura Cymbalista |A sociedade tem que olhar pra essas situações e acender um alerta vermelho. A sociedade tem que gritar que não tolera e não aceita mais.
É interessante a gente pensar na responsabilidade coletiva, né? Porque é óbvio que tem o peso da ação do indivíduo, do agressor, do assassino, do estuprador, e ele tem que ser julgado e punido por essa ação, mas a gente tem que olhar para o todo, para o contexto.
o que que falhou para a Cristiane terminar assassinada? Porque já havia uma história de agressões, inclusive de boletins de ocorrência. Então o primeiro aspecto é esse. Tem que ter uma rede de proteção que de fato ampare a mulher que sofre violência. Como que o Estado viabiliza a proteção dessa mulher?
Quanto mais a sociedade é tolerante, é conivente, ela [sociedade] é cumplice quando acontece o assassinato também porque chegou nesse momento sem que houvessem intervenções pra que isso não acontecesse. Não dá pra gente fingir que não viu, atravessa a rua deixa o casal, deixa o marido agredindo, e a gente finge que não tá vendo que eles se resolvem.
MUDANÇAS SÃO NECESSÁRIAS
A ativista e professora diz não ter fórmulas mágicas para resolver estas questões, e que, da mesma forma que o problema da violência contra as mulheres é estrutural, sua resolução também será.
Laura Cymbalista | Nós temos que discutir a mudança também estrutural do nosso arcabouço de leis, da legislação, das bases jurídicas, elas foram pensadas com uma cabeça de outro tempo. Muita coisa aconteceu e andou e mudou no mundo. Tem uma série de leis que não consideram todo o processo de conquista de direitos e de luta por igualdade das mulheres. E as instituições, porque mesmo quando as leis avançaram, os operadores das leis não avançaram junto com a lei. Então a gente vê as estruturas de delegacia, de delegado, advogado, juiz, totalmente atrasadas
Então é preciso olhar pro conjunto das coisas. Por isso que é tão importante a escola, por isso que é tão importante a gente olhar como a gente educa as novas gerações.
Então a gente tem uma tarefa muito grande mesmo que a de construir novas relações baseadas na igualdade de direitos, na liberdade, na autonomia, no respeito. E isso não vai ser apenas bom pras mulheres. Isso vai ser bom pra todo mundo, inclusive pros homens, que também tem estado dentro de um padrão que também é violento pra eles.
DIREITOS DAS MULHERES
A educadora e militante conclui explicando a importância que tem para ela a luta pelo direito das mulheres.
Laura Cymbalista | A luta pelo direito das mulheres é necessária e urgente, não tem esse papo de que tá ultrapassado. O feminismo é necessário e urgente porque a gente tem que reconstruir as bases das relações humanas na nossa sociedade. E isso tem que acontecer dentro da escola, isso tem que acontecer dentro dos partidos, tem que acontecer na rua, isso tem que acontecer em todos os lugares. Porque nós precisamos desconstruir, enfrentar, acabar com essa ideologia que gera tanta desigualdade, tanta violência, tanta impunidade, tanta dor.
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