ENTREVISTA

Peçonhenta, espécie de peixes que apareceram no litoral de SP é a que mais causa acidentes no Brasil

Cardume com dezenas de bagres mortos surgiu em praia de Bertioga; pesquisadora do Instituto Butantan explica desafios para o desenvolvimento de soro contra veneno da espécie

Thiago S. Paulo
Publicado em 31/03/2023, às 09h22 - Atualizado em 01/04/2023, às 08h34

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Peixes bagre são os que mais provocam acidentes no Brasil. Subnotificação dos casos é desafio para pesquisa, avalia pesquisadora 2 - Peçonhenta, espécie de peixes que apareceram mortos no litoral de SP é a que mais causa acidentes no Brasil Peixes bagre em - Imagem: Reprodução / Prefeitura de Paulista
Peixes bagre são os que mais provocam acidentes no Brasil. Subnotificação dos casos é desafio para pesquisa, avalia pesquisadora 2 - Peçonhenta, espécie de peixes que apareceram mortos no litoral de SP é a que mais causa acidentes no Brasil Peixes bagre em - Imagem: Reprodução / Prefeitura de Paulista

Dentre os peixes peçonhentos, os bagres - mesma espécie do cardume que apareceu morto na praia de Boraceia, em Bertioga  - são os que mais causam acidentes no Brasil, explicou em entrevista ao Portal Costa Norte a pesquisadora Monica Lopes Ferreira, pioneira na pesquisa de soros antiveneno de peixes no país.

Um jovem que fez um registro dos peixes mortos na praia de Boraceia na última semana disse que após o encalhe “alguns banhistas pegaram os peixes mortos". O Instituto de Pesca, que conduz pesquisas científicas no setor, advertiu que animais marinhos encontrados naquelas condições jamais devem ser consumidos pelo risco de contaminação (a degradação da matéria orgânica começa logo após a morte).

Mesmo vivos, porém, os bagres (Catharops spixii) figuram no catálogo de peixes peçonhentos da costa brasileira, explica a bióloga e pesquisadora do Laboratório de Toxinologia Aplicada do Instituto Butantan Monica Lopes Ferreira. Banhistas e pescadores são os mais vitimados pelos acidentes com bagre, esclarece a professora.  

Há mais de 20 anos à frente de estudos que buscam decifrar o veneno, ela explica que o desenvolvimento experimental de um soro para neutralizar a peçonha de peixes, incluindo a do bagre, tem avançado, mas ainda há um longo caminho pela frente até a universalização do medicamento. Confira a entrevista.  

Qual o patamar atual das pesquisas relativas ao soro para neutralizar veneno de peixes peçonhentos coordenadas pela senhora?

Mônica: Inicialmente estudamos se um soro seria capaz de reverter os sintomas (dor, edema e necrose) provocados pelo veneno de peixe-sapo ou niquim (Thalassophryne nattereri). Produzimos soros em coelhos e equinos e ambos foram eficazes na neutralização dos sintomas. Os resultados obtidos nos encorajaram a produzir experimentalmente um novo soro, agora um soro policlonal, produzido a partir de venenos de importantes peixes peçonhentos que provocam efeitos locais e sistêmicos como o bagre, o peixe-escorpião, a arraia e o próprio niquim. Os resultados são animadores, o soro policlonal produzido em camundongos foi eficiente em neutralizar os efeitos tóxicos causados pelos venenos em diferentes tratamentos.

Poderíamos agora seguir etapas importantes: idealmente seria a produção desse soro policlonal em equinos, em uma escala bem maior e seguindo os padrões de produção dos demais soros, outra seria avaliar a eficácia desse soro frente a outros venenos de peixes.

Peixes da espécie bagre surgiram mortos na praia de Boracéia, em Bertioga Peixes da espécie bagre são encontrados mortos na praia de Boracéia, em Bertioga; VÍDEO Peixes da espécie bagre são encontrados mortos na praia de Boraceia (Foto: Reprodução/Lucas Almeida)

Como funciona o soro contra peçonha de peixes?

Monica: Quando administramos um soro estamos administrando anticorpos. Nesse caso, o produto a ser aplicado no nosso corpo são os próprios anticorpos, não sendo necessária a produção dessas substâncias pelo organismo, se trata de uma imunização passiva.

O acidente ocorre, os sintomas aparecem e precisamos de uma solução imediata, o soro é o medicamento, são os anticorpos que vão "se encontrar" com o veneno (antígeno) e solucionar o problema, neutralizando os sintomas decorrentes do envenenamento.

É possível estimar quando teremos um soro disponível?

Monica: Uma etapa muito importante para a implantação da soroterapia como tratamento para acidentes por peixes é a notificação dos acidentes. Sem dúvida essa é a primeira etapa. Sabemos que acidentes por peixes ocorrem praticamente todos os dias, em diferentes lugares do nosso Brasil, mas não temos um número oficial, porque a notificação não é realizada de maneira correta, seguindo a recomendação do Ministério da Saúde. Outro passo é a padronização de produção de um soro em equinos. Com o soro produzido teríamos que avaliar sua eficácia, passar por testes pré-clínicos, seguindo todos os protocolos. É difícil falarmos de quanto tempo hoje, mas sabemos que é necessário que aconteça.

Em linhas gerais, como têm sido realizados os estudos?

Monica: Os trabalhos que realizo com peixes peçonhentos tiveram início em 1998, aqui no Instituto Butantan. Considero que grandes descobertas sobre os venenos (niquim, arraia, bagre, peixe-escorpião) já foram realizadas. Podemos hoje traçar um painel das principais atividades tóxicas causadas por esses venenos. Avançamos sobre o mecanismo de ação, sobre a caracterização bioquímica dos componentes sejam proteicos ou peptídicos. Também descobrimos no veneno de niquim uma família de proteínas, denominada Natterina, que hoje é encontrada em muitos outros animais e com função de proteção e um peptídeo (TnP) com ação anti-inflamatória.

Quais os principais peixes peçonhentos que incidem no litoral brasileiro, no geral, e no litoral paulista, no particular?

Monica: Arraias, bagres, peixe-escorpião e niquim. De todos, os que mais causam acidentes são os bagres. Os bagres destacam-se pela larga distribuição nos mares e rios do mundo inteiro, são peixes de couro e vivem em locais rasos e de fundo lodoso. Eles apresentam longos e robustos ferrões serrilhados à frente das nadadeiras, dorsal (um espinho) e peitoral (dois em cada nadadeira), todos revestidos por tecido glandular. No peixe, encontramos, além das glândulas que revestem os espinhos, outras duas fontes de veneno: a secreção encontrada nos poros glandulares axilares e o veneno da pele. Dos peixes peçonhentos do Brasil, são os que provocam o maior número de acidentes por estarem amplamente distribuídos por toda a costa, sendo mais abundantes nas regiões Sudeste e Sul. Os acidentes ocorrem principalmente quando pescadores manuseiam redes de pesca e quando banhistas pisam em um exemplar morto descartado na praia. Os acidentes provocados pelo bagre são caracterizados por ferimentos puntiformes ou lacerantes, eritema, edema, dor que se irradia pelo membro, sudorese, mal-estar, febre, náusea, vômito, agitação psicomotora e infecção secundária.

Bertioga Imagem aérea da cidade de Bertioga com prédios, casas e praia (Divulgação/Prefeitura de Bertioga)

Qual a importância do desenvolvimento de um soro para neutralizar veneno de peixes peçonhentos?

Monica: É preciso lembrar que nosso país possui uma extensa linha costeira de águas temperadas e tropicais que propicia a existência de grande número de animais potencialmente perigosos que - associados a fatores como o grande afluxo de banhistas às praias, o incremento à pesca comercial e esportiva, atividades como mergulho autônomo e pesca submarina - favorecem a ocorrência de muitos acidentes em humanos, sendo grande parte destes provocados por peixes peçonhentos.

Praticamente todas as famílias e gêneros de peixes peçonhentos têm representantes nos mares e rios do nosso país. Peixes peçonhentos possuem glândulas de veneno dispersas em estruturas de liberação de veneno, como ferrões retroserrilhados ou espinhos. Acidentes podem ocorrer, entre outras formas, quando o veneno glandular que cobre o espinho se rompe e o veneno é liberado na ferida junto com o muco, ou quando o espinho penetra no tecido e o veneno é injetado na vítima. A palma das mãos e a sola dos pés são os locais mais comumente afetados em humanos. O envenenamento é capaz de causar danos como inflamação, edema, dor excruciante, necrose de difícil cicatrização, além de alterações hemodinâmicas e cardiorrespiratórias.

É importante destacar que acidentes por peixes peçonhentos de diferentes famílias vêm ocorrendo com maior frequência e não existe até o momento um tratamento específico eficaz o que acarreta um problema médico e socioeconômico, pois as vítimas permanecem de dias a meses com os sintomas do envenenamento, impossibilitadas de voltar ao trabalho. Também sabemos que apesar da grande variedade de tratamentos farmacológicos utilizados para o manejo dos sintomas agudos, nenhum é eficaz no controle do envenenamento. Foram esses os motivos pelos quais iniciei estudos para verificar se um soro seria o tratamento eficiente para acidentes por peixes, tomando como exemplo o que acontece com envenenamentos provocados por outros animais peçonhentos e também por peixes australianos.

Precisamos concentrar nossos esforços, a meu ver, é no quesito terapia. Os acidentes continuam ocorrendo, ocorrem diariamente em diferentes regiões de nosso país. Acidentes que incapacitam. Nossos trabalhos apontam a soroterapia como uma forma eficiente e eficaz de tratamento. Precisamos somar conhecimento, esforços para implantarmos definitivamente uma terapia para os acidentes por peixes peçonhentos.

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