VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

“Não foi parto. Foi tortura”: mãe acusa maternidade em SP de submeter filha a procedimento proibido

Dona de casa do Vale do Ribeira afirma que filha de 26 anos, com gestação de alto risco, foi vítima de violência obstétrica durante 20 horas de indução ao parto em maternidade no Vale do Ribeira

Thiago S. Paulo
Publicado em 30/09/2022, às 16h25 - Atualizado em 05/10/2022, às 11h29

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Juliana durante a gestação capa - “Não foi um parto, foi uma tortura”: Mulher acusa maternidade em SP de submeter filha grávida a procedimento proibido Jovem grávida - Imagem: Acervo Pessoal
Juliana durante a gestação capa - “Não foi um parto, foi uma tortura”: Mulher acusa maternidade em SP de submeter filha grávida a procedimento proibido Jovem grávida - Imagem: Acervo Pessoal

A maternidade do Hospital Regional de Pariquera-Açu, no Vale do Ribeira, em São Paulo, está sendo acusada de submeter uma gestante de 26 anos a um show de horrores durante o parto de seu segundo filho no último domingo (25).

A mãe da parturiente, a dona de casa de 44 anos Fabiana Maciel Corrêa, afirma ter acompanhado a filha grávida durante o pré-natal e o parto, quando diz ter testemunhado a equipe médica da maternidade submetê-la a procedimentos no mínimo duvidosos ou até proibidos pela obstetrícia.

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“Minha filha foi muito machucada. Dilaceraram ela por baixo. O que ela passou foi uma tortura, não foi um parto”, desabafou Fabiana, sem esconder a indignação, em entrevista ao Portal Costa Norte ontem (29). 

Fabiana diz que o martírio da filha, a recepcionista Juliana Corrêa Aguiar, começou meses antes do parto, durante o pré-natal, quando ela foi diagnosticada com diabetes e hipertensão gestacional, o que fez com que a gravidez fosse tipificada como de alto risco. Debilitada após o parto, Juliana não pôde conceder entrevista.

Gestante de alto risco e traumatizada por um parto também problemático realizado há pouco menos de quatro anos, Juliana insistiu por uma cesárea em vez de parto normal. No entanto, segundo a versão de sua mãe, seus pedidos não foram considerados pela equipe médica da maternidade.

A dona de casa diz que, durante um acompanhamento quinzenal na mesma maternidade, ela e a filha alertaram a equipe médica de que no parto anterior, em 2018, a jovem não atingiu a dilatação suficiente e que foi necessário o uso de fórceps para a retirada de Luíza, hoje com 3 anos. “Machucaram a neném na época”, relembra Fabiana.

Dona de casa Fabiana Corrêa. Ela acusa maternidade em Pariquera-Açu, no Vale do Ribeira, de submeter sua filha grávida à violência obstétrica Fabiana - “Não foi um parto, foi uma tortura”: Mulher acusa maternidade em SP de submeter filha grávida a procedim (Imagem: Acervo Pessoal)

Na avaliação delas, uma cesárea evitaria o sofrimento do parto anterior de Juliana. “Ela [Juliana] falou pros médicos que não ia aguentar o parto normal porque o outro parto foi assim”.

À reportagem, a ginecologista e obstetra Nárima Caldana esclarece que, via de regra, hipertensão e diabetes gestacional não excluem a possibilidade do parto vaginal, mas pontua que cada caso deve ser analisado em sua singularidade com acolhimento da paciente.

“Teoricamente, se o peso e tamanho do bebê não impedirem, a diabetes e a hipertensão gestacional não contraindicam a realização do parto vaginal. Eu aposto muito na relação que se estabelece com a paciente. Às vezes, a paciente pede cesárea por acreditar que é mais seguro”, explica a obstetra, que leciona no curso de medicina da Faculdade Barão de Mauá.

Medos e traumas das grávidas devem ser tão observados quanto os aspectos clínicos, explica a professora.

“Por exemplo, imagine uma gestante cuja mãe faleceu no parto. E aí, ela está em trabalho de parto e ela vai ter um parto normal. Muita gente vai falar:  ’Ah, é uma oportunidade de ela ressignificar isso e tal’. Mas gente, se não se sabe o trauma da pessoa, se não se sabe qual trabalho foi feito com ela no pré-natal, pra orientar, instruir a paciente, como fazer com que a paciente tenha conhecimento suficiente pra confiar no corpo dela em todo o processo de trabalho de parto?”.

Fabiana diz que a certeza de sua filha de que o parto normal terminaria em desastre era tão grande que, ao se aproximar da data do nascimento do segundo filho, Juliana entrou na Justiça com uma liminar para obrigar o Consaúde (Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Ribeira), que gere a maternidade, a realizar a cesárea.

No pedido, Juliana argumentou que sua gravidez era de alto risco e evocou uma lei promulgada em 2019 no estado de São Paulo. A lei garante às grávidas a possibilidade de optar pela cesariana a partir da 39ª semana de gravidez.

No entanto, em decisão expedida no último dia 15, dez dias antes do parto, o juiz Bruno Gonçalves Mauro Terra, da comarca de Iguape, negou o pedido de Juliana. O magistrado argumentou que não foi juntado laudo médico ao processo e que a lei evocada no pedido foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. No entanto, o juiz não observou que em decisão posterior o Supremo Tribunal Federal revalidou a lei.

A mãe de Juliana afirma que, grávida de quase nove meses, sua filha não conseguiu o laudo médico exigido pelo juiz.

Sem amparo judicial ou médico, na 39ª semana de gestação, Juliana foi internada na maternidade do Hospital Regional Dr. Leopoldo Bevilacqua na manhã do último sábado (24) para realizar um parto normal à contragosto, afirma sua mãe. “Fiquei desde a entrada até o neném nascer”, diz Fabiana.

Segundo ela, na tarde do mesmo dia, a equipe médica iniciou uma indução ao parto normal em Juliana que só terminou na tarde do dia seguinte.

Induções a partos normais podem ser prolongadas, explica a obstetra e ginecologista Nárima Caldana. “Entre induzir o parto e começarem as contrações do trabalho de parto ativo, existe um caminho muito longo, pode ser que demore 24h e seja tudo normal. Depende”.

No entanto, diz Fabiana, normalidade não está entre o que foi experimentado por sua filha e seu neto. 

"Ela não aguentava mais de dor, de tanta tortura de dor. Foi a tarde inteira, a madrugada inteira, de tortura, de dor. Eu estava dentro da sala do parto, eu vi tudo. Nenhum dedo de dilatação. Eu implorava pros três médicos que estavam de plantão que fizessem uma cesárea. Eles [médicos] falavam que era tudo normal”, relembra Fabiana, enfurecida.

Às 15h de domingo, após 20 horas de suplício, Juliana entrou em trabalho de parto e se iniciou outro flagelo, diz sua mãe. Ela acusa a equipe médica de praticar violência obstétrica contra sua filha também durante as quase duas horas de parto.

“Aplicaram um medicamento nela. Ela começou a dilatar um dedo, dois. Ela morrendo de dor, torturada mesmo, de dor, que ela não aguentava mais, ela não tinha mais forças pra nada. O médico machucou muito, forçou muito a barriga dela. Tiraram o neném com fórceps. O neném era grande, o corte que fizeram nela foi muito grande”, afirma Fabiana, quase aos prantos.

Segundo a professora de medicina Nárima Caldena, o fórceps pode ser usado em partos excepcionais. “Existem três tipos de fórceps que tem indicação pra descida do bebê [pelo canal vaginal], pra quando está difícil de descer. Teoricamente, o fórceps pode ser usado, depende da indicação e tem que ser por alguém que seja treinado nesse tipo de procedimento”, esclarece Nárima.

Já o ato de empurrar a barriga da gestante para forçar a saída do bebê, batizado na obstetrícia de manobra de Kristeller, é um procedimento banido pela medicina. O Guia dos Direitos da Gestante e do Bebê, publicado pelo Ministério Público, Ministério da Saúde e Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), estabelece que “não se deve jamais empurrar a barriga da mulher para forçar a saída do bebê porque isso expõe a mulher e o bebê a riscos”.

 “Hoje em dia", explica a obstetra, “nos tratados de obstetrícia, a manobra de Kristeller é descrita como proscrita [proibida], como não indicada”.

Luca Matheus, o filho de Juliana, nasceu minutos antes das 17h de domingo e foi direto para a UTI da maternidade. Dias depois, ele recebeu alta da UTI, mas continuou internado no hospital em acompanhamento médico. Na tarde de hoje, 30 de setembro, Juliana e Luca receberam alta.

Luca Matheus, filho recém-nascido de Juliana Luca - “Não foi um parto, foi uma tortura”: Mulher acusa maternidade em SP de submeter filha grávida a procedimento proibido Bebê recém-nascido (Imagem: Acervo Pessoal)

Na última terça, Dyhego França, um vereador de Iguape - cidade vizinha à da maternidade, onde moram Fabiana e Juliana - fez um discurso inflamado no parlamento da câmara da cidade contra as práticas da maternidade e exigiu que o hospital respeite a lei que garante à parturiente a possibilidade de optar pela cesariana. No parlamento da Assembleia Legislativa de São Paulo, a deputada estadual Janaina Paschoal, autora da lei, também denunciou o caso.

A reportagem perguntou ao Consaúde, que gere o hospital regional Dr. Leopoldo Bevilacqua, incluindo a maternidade, quais foram as razões clínicas para o pedido de cesariana de Juliana não ter sido atendido. O Consaúde não respondeu.

A direção da maternidade também não respondeu se havia uma maneira de Juliana ter sido submetida a menos sofrimento imediatamente antes e durante o parto e por que durante o procedimento foi realizada a manobra proibida de Kristeller. A direção do hospital também não respondeu.

Questionada sobre a quais penalidades a equipe médica da maternidade está sujeita se comprovadas as denúncias, a delegacia da cidade de Registro do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) disse, em nota, que “não pode emitir posicionamento ou juízo de valor em relação a casos como este”. O Cremesp acrescentou que uma apuração do órgão depende de uma denúncia formal da paciente.

A secretaria de Saúde de Pariquera-Açu disse que a administração municipal não responde pelo Hospital Regional.

Fabiana acredita que sua filha foi submetida a tratamento degradante durante o nascimento do filho e disse que pretende processar o hospital. “Quero que todo mundo saiba o que aconteceu pra que não aconteça com outras pessoas. Porque é muito humilhante, minha filha foi muito destratada. Falando o português claro, ela foi tratada como uma cachorra”.

Após a repercussão do caso de Juliana, um informe sobre o direito de opção das parturientes entre cesárea ou parto normal foi afixado nos corredores da maternidade. 

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