ENTREVISTA

Bloqueios em vias não são só antidemocráticos, como são 'golpistas e criminosos', avaliam estudiosos

Professora de ciência política, mestre em direito e historiadora analisam protestos nas estradas brasileiras e apelos por intervenção militar após resultado das eleições

Thiago S. Paulo
Publicado em 04/11/2022, às 09h03 - Atualizado às 21h28

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Alessandra Maia, doutora em ciências sociais e professora do departamento de Ciência Política da Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro Alessandra Maia - Bloqueios nas estradas não são só antidemocráticos, como são ‘golpistas’ e ‘criminosos’, a - Imagem: Acervo Pessoal / Alessandra Maia
Alessandra Maia, doutora em ciências sociais e professora do departamento de Ciência Política da Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro Alessandra Maia - Bloqueios nas estradas não são só antidemocráticos, como são ‘golpistas’ e ‘criminosos’, a - Imagem: Acervo Pessoal / Alessandra Maia

Nesta sexta (4), o Brasil entra no quinto dia após as eleições presidenciais com trechos de estradas interditados por manifestantes bolsonaristas. Ontem, o número de bloqueios ou interdições, que na segunda-feira ultrapassou 300 rodovias em 25 estados, refluiu para 73 em sete estados. Na manhã de hoje, há 15 pontos interditados em cinco estados, segundo as últimas informações da PRF (Polícia Rodoviária Federal).  

Nas principais rodovias do litoral de SP, os bloqueios se acentuaram entre segunda e terça, quando o governo paulista determinou que a polícia militar interferisse e as estradas foram liberadas.

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Os manifestantes contestam o resultado das eleições e pedem intervenção militar, citando o artigo 142 da Constituição que supostamente chancelaria uma interferência das Forças Armadas no resultado das urnas.

Bloqueios na Rodovia Rio-Santos, no litoral de São Paulo Rio-Santos manifestação Carros parados no trânsito e pessoas segurando bandeiras do Brasil na mão e colocando na pista (Imagem: Reprodução)

Tal como fez o próprio Bolsonaro em dois minutos de pronunciamento após 44 horas de silêncio quanto ao resultado das urnas, parte da ala negacionista e fanática do bolsonarismo chega a condenar timidamente o fechamento das estradas, mas defende a legitimidade dos protestos.

No entanto, nas avaliações da professora de ciência política da PUC-Rio, Alessandra Maia, do advogado e mestre em Direito pela USP, Vitor Lucena, e da historiadora pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) Paula Coradi, os atos não são só antidemocráticos, como são “golpistas” e “criminosos” tanto na forma quanto em seu universo de justificativas.

Em entrevistas ao Portal Costa Norte nesta quinta (3), os três estudiosos analisaram as principais características e argumentos que envolvem os protestos. A professora de ciência política Alessandra Maia argumenta que o fechamento das estradas ultrapassam os limites constitucionais e podem ser caracterizados como ‘’tática de guerrilha".

Com atuação nas áreas de direito constitucional e eleitoral, o advogado Vitor Lucena sustenta que além dos protestos serem antidemocráticos, as exigências por subversão ao resultado das eleições presidenciais “são golpistas porque querem algo que o direito brasileiro não prevê”.

A historiadora e ativista Paula Coradi, por sua vez, qualifica como “equivocada, desonesta e lunática” a visão de que o art. 142 da constituição endossaria intervenções militares. Leia abaixo as entrevistas:

Os bloqueios nas estradas brasileiras são antidemocráticos?

Alessandra Maia O problema maior da disposição das pessoas quando elas estão bloqueando as estradas é que esses bloqueios, intencionalmente, trazem a mensagem de que não se quer respeitar o resultado da eleição [presidencial]. Então, em primeiro lugar, isso já é um crime contra a democracia, por estar justamente contradizendo o que estabelecem a nossa Constituição e todo o rito democrático brasileiro.

Em segundo lugar, ao bloquearem as estradas intencionalmente, por querer questionar o resultado das eleições, os manifestantes produzem caos social e impedem o direito de ir e vir de todo o restante da população. Isso é muito grave porque caracteriza uma tática de guerrilha. Dentro do pensamento político, isso pode ser atribuído a grupos que estão atentando contra o estado de direito, o que justificaria a prisão deles.

Vitor Lucena São antidemocráticos, na forma e no conteúdo. Na forma porque apesar do direito de manifestação ser garantido na Constituição, ele não pode ser feito de qualquer maneira, frustrando indefinidamente o direito das demais pessoas de se deslocar por uma minoria, impedindo serviços públicos e atividades particulares essenciais etc. E no conteúdo porque são a favor de um golpe no sistema democrático.

Paula Coradi Acredito que a tática de bloqueio de estradas em si não é antidemocrática, mas, de fato, nos últimos anos, a pauta que mobiliza essas ações, como o não reconhecimento do resultado das urnas, é. Isso é uma tentativa golpista de gerar instabilidade no Brasil, como alguns têm dito, Capitólio tupiniquim.

Os bloqueios nas rodovias são golpistas? Por quê?

Alessandra Maia Sim. Porque eles querem derrubar a democracia. O que eu acho mais grave, que deve chamar a atenção da sociedade, é que isso é insubordinação civil, com o agravante de que, quando recebe eventual apoio de setores da polícia ou de qualquer outro órgão de estado, isso traz a característica também de insubordinação militar. Isso é grave e precisa haver investigação e responsabilização.

Vitor Lucena São [atos] golpistas porque querem algo que o direito brasileiro não prevê: reverter o resultado eleitoral legítimo de domingo, pedindo que as Forças Armadas intervenham nos poderes constituídos, substituindo a vontade do povo coletada por meio do voto.

Paula Coradi Novamente acredito que seja a questão das pautas que estão envolvidas. Nos últimos anos essa tática tem sido muito usada pelo bolsonarismo para gerar instabilidade e justificar ações antidemocráticas.

Alessandra Maia, doutora em ciências sociais e professora do departamento de Ciência Política da Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro Alessandra Maia - Bloqueios nas estradas não são só antidemocráticos, como são ‘golpistas’ e ‘criminosos’, a (Imagem: Acervo Pessoal / Alessandra Maia)

De que forma os bolsonaristas insatisfeitos com o resultado das eleições poderiam protestar sem incorrer em atos antidemocráticos e golpistas?

Alessandra Maia Ao longo de toda a história, sempre houve pessoas protestando, mas, atualmente, em um protesto legítimo, inicialmente, os organizadores devem avisar as autoridades com antecedência ‘’olha, nós vamos estar nesse lugar, nessa hora”.

Esse grupos poderiam ir na frente de determinados lugares e ficar com suas bandeiras, não haveria problema. O que não podem são atos que impedem o direito de ir e vir dos outros, com potencial de parar o país e desabastecer cidades inteiras. É muito grave impedir que pessoas doentes possam receber tratamento, impedir que grávidas possam chegar ao hospital para dar à luz.

Vitor Lucena Eles podem reunir provas de que houve alguma conduta ilegal da parte da chapa vencedora, que ensejasse uma ação que impedisse a diplomação, por algum abuso de poder econômico, fraude, corrupção ou a cassação da chapa eleita. Após tomarem posse, se alguma conduta dos eleitos puder ser encarada como crime de responsabilidade, podem dar entrada em processo de impeachment ou denunciar ao Ministério Público Federal por crime comum. Existem muitas formas de um eleito perder o cargo, mas não pela força no direito brasileiro.

Bolsonaristas têm citado que o artigo 142 da Constituição supostamente chancelaria uma interferência das Forças Armadas no resultado das eleições, qual sua avaliação desta interpretação da lei?

Alessandra Maia Essa interpretação do artigo 142 é antidemocrática porque ela quer colocar as Forças Armadas como um poder acima dos demais poderes. Isso é tirania. O que caracteriza todas as democracias no mundo é que as Forças Armadas devem obediência à Constituição. Há um equívoco de interpretação, uma tentativa de manipular um artigo que é proveniente ainda do tempo da ditadura. Essa percepção de que as Forças Armadas estão acima da lei é uma percepção também antidemocrática. Elas não podem estar acima da Constituição. Não é só grave como não se sustenta.

Vitor Lucena Uma leitura simples, por parte de qualquer pessoa, mesmo leiga em direito, não autoriza uma interpretação do Art. 142 e seus parágrafos no sentido de que as Forças Armadas possam intervir no processo eleitoral. Diz, pelo contrário, que estas estão subordinadas aos poderes constitucionais (executivo, judiciário e legislativo). Toda autoridade pública, civil ou militar, que entender que pode atuar arbitrariamente contra os poderes constituídos, deve ser investigada e punida.

Paula Coradi É uma visão equivocada e desonesta. É mais uma visão lunática, que só existe dentro dos grupos de whatsapp desses grupos bolsonaristas. O dever das Forças Armadas é respeitar a soberania popular que elegeu Lula presidente.

Vítor Lucena é advogado e mestre em Direito pela USP (Universidade de São Paulo), com atuação nas áreas de direito eleitoral, financeiro e constitucional Vitor Lucena - Bloqueios nas estradas não são só antidemocráticos, como são ‘golpistas’ e ‘criminosos’ (Imagem: Acervo Pessal / Vitor Lucena)

Nesta quarta, o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Sarrubbo, declarou que ‘’estamos diante de uma organização criminosa” ao citar quem possa estar por trás dos protestos. Como você avalia esta declaração?

Alessandra Maia Certamente se trata de uma organização criminosa pois está agindo contra a liberdade das pessoas, está agindo contra o estado de direito, está agindo contra o resultado das eleições e está buscando causar caos na sociedade. A meu ver, tudo isso, caracteriza crime.

Então há que se perceber quais são esses lugares de articulação, que tipo de diretriz está sendo dada e de onde sai o dinheiro. Porque se a gente for pensar, todas as pessoas comuns, os trabalhadores, se a gente não trabalha, a gente não ganha. Então ficar quatro, cinco dias fechando rodovias, precisa de recursos financeiros e ação coordenada pra isso. 

Vitor Lucena Correto. Inclusive, o Código Penal foi reformado em 2021 pela Lei nº 14.197 para inserir os Crimes contra o Estado Democrático de Direito. Em particular, dentre os Crimes Contra as Instituições Democráticas, o Art. 359-L prevê pena de reclusão para quem, com emprego de violência ou grave ameaça, impede ou restringe o exercício dos poderes constitucionais e no Art. 359-M tentar depor o governo legitimamente constituído é crime.

Paula Coradi Está correto, é inconstitucional a defesa da intervenção militar e atos antidemocráticos.

Bolsonaristas mais fanáticos argumentam que os protestos são democráticos e, quando muito, somente admitem que há um problema na forma dos protestos, nos bloqueios. O que você diria sobre isso?

Alessandra Maia Eu acho que é justamente o inverso. Uma coisa é você momentaneamente fazer um ato que exija uma melhoria do seu direito, um aumento de salário, por exemplo. A história das greves, inclusive, mostra esse elemento. O que é completamente absurdo é você querer usar um protesto pra questionar o resultado da eleição porque a eleição é o que garante a nossa liberdade.

Vitor Lucena Além da forma estar errada, desde o princípio, mas principalmente quando há ordem judicial para desobstruir as estradas, também o conteúdo dos protestos é totalmente contra o exercício dos poderes democráticos no Brasil.

Paula Coradi Mais um argumento fora da realidade. Além de atrapalhar o escoamento da produção, a livre circulação de milhares de brasileiras e brasileiros, eles precisam aceitar o resultado da urna. É assim que funciona a democracia.

Paula Coradi é historiadora pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) e ativista da executiva nacional do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Paula Coradi - Bloqueios nas estradas não são só antidemocráticos, como são ‘golpistas’ e ‘criminosos’, (Imagem: Acervo Pessoal / Paula Coradi)

Qual a sua opinião sobre os bloqueios?

Alessandra Maia Esses poucos grupos estão atentando contra o direito ao voto de mais de 200 milhões de brasileiros. Isso é grave porque eles foram derrotados no voto da mesma forma que em 2018 eles foram vencedores no voto. Por que a conta só está errada nesta eleição? É muito grave, é criminoso, e digo mais uma vez, não são todos os eleitores do Bolsonaro,  são esses que ao fazerem esses protestos estão cometendo um crime contra a liberdade de todos os cidadãos.

Vitor Lucena Pra além de tudo que foi dito no âmbito jurídico, do ponto de vista político é um desastre. Uma camada ainda que pequena da sociedade, que foi incensada pelo candidato a presidente da República derrotado no último domingo, não só não acredita no pacto democrático da sociedade brasileira como está disposta a fazer valer suas vontades por meio da força. E ainda encontra eco em funcionários públicos das polícias e das Forças Armadas. Felizmente, é uma absoluta minoria, mas cujas ações devem ser apuradas e exemplarmente punidas.

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Paula Coradi Eu acho que é choro de quem não sabe perder e não respeita a democracia e por esse último fato acredito que seria importante identificar quem financia e articula esses movimentos antidemocráticos e enquadrá-los por atentar contra as liberdades democráticas. 

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