Futuro

Pesquisadora modifica proteína do leite para aumentar sua digestão em idosos

Pesquisa desenvolvida no Instituto de Química de São Carlos poderá trazer benefícios não só para os consumidores de produtos lácteos, mas também para a indústria de lacticínios

Da Redação
Publicado em 07/08/2019, às 06h41 - Atualizado em 24/08/2020, às 05h52

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Henrique Fontes/IQSC
Henrique Fontes/IQSC

Em 2030, o número de idosos do Brasil ultrapassará pela primeira vez o de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O aumento da expectativa de vida desafia a sociedade a desenvolver soluções que promovam um envelhecimento cada vez mais saudável, principalmente com relação aos aspectos fisiológicos do público da terceira idade. Uma iniciativa interessante nesse sentido é o estudo de Juliana Fracola, aluna do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP. Em seu trabalho de mestrado, a pesquisadora modificou uma das principais proteínas do leite, a betalactoglobulina, a fim de aumentar sua digestão em idosos.

Para transformar a proteína, Juliana utilizou luz ultravioleta (UV) para irradiá-la, gerando uma reação que foi capaz de alterar sua estrutura. Depois do procedimento, a “nova” proteína foi adicionada a uma solução que simula as condições gástricas de idosos da saliva até o estômago, visando verificar a eficiência do processo digestivo. “Obtivemos um aumento de 50% na digestão da proteína irradiada em comparação a que não recebeu ação da luz”, afirma a estudante. O método utilizado na pesquisa também foi aplicado para avaliar como seria o processo digestivo em adultos e crianças. Em ambos os casos, o aumento na digestão foi de 25%.

Além de ser facilmente absorvida pelo organismo, a proteína irradiada com a luz passou a ter mais qualidade, pois gerou peptídeos (pequenos fragmentos de proteínas) com funções antioxidantes, anti-hipertensivas e ansiolíticas. “Podemos imaginar, por exemplo, que, se uma pessoa consumir certa quantidade dessa proteína diariamente, poderá ter um maior controle da hipertensão”, explica Daniel Cardoso, professor do IQSC e orientador do estudo.

No trabalho, os pesquisadores utilizaram um tipo de luz ultravioleta conhecida por sua função bactericida e esterilizante, a qual já era empregada no tratamento de alimentos para destruir microrganismos. No entanto, os cientistas não imaginavam que a luz UV poderia facilitar a digestão de proteínas. “A pesquisa mostrou uma alternativa capaz de aliar a produção de alimentos nutritivos, com maior qualidade e altamente digestíveis. Isso será muito benéfico ao processo de envelhecimento da população”, diz Juliana, que foi bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

A betalactoglobulina é a principal proteína do soro do leite e, devido a sua formação estrutural, associada a menor capacidade de mastigar e a reduzida atividade gástrica de idosos, tem sua digestão dificultada no estômago. Essa resistência, inclusive, pode causar alergias, como se fosse uma resposta do organismo que deseja metabolizá-la, mas não consegue. Bebida indispensável para quem precisa aumentar a força física e a massa muscular, o leite é composto de água, lipídeos, lactose e proteínas, além de ser fonte de cálcio e vitaminas.

Diversas alterações fisiológicas estão associadas ao envelhecimento, como a osteoporose, mudanças nas funções cerebrais, cardiovascular, metabólica e a aparição de sarcopenia – perda natural e progressiva de força e massa muscular. Todos esses problemas podem diminuir a qualidade de vida e a capacidade dos idosos de realizarem atividades básicas do dia a dia. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o número de pessoas com idade superior a 60 anos chegará a 2 bilhões até 2050, ano em que, no Brasil, os idosos representarão quase 30% da população nacional, segundo o IBGE. Atualmente, a expectativa de vida no país é de 76 anos.

Alternativa promissora – A pesquisa desenvolvida no IQSC poderá trazer benefícios não só para os consumidores de produtos lácteos, mas também para a indústria de lacticínios, que busca processos energeticamente mais baratos, com menor tempo de execução e que atendam a demanda nutricional diária da população. Enquanto as técnicas que envolvem o aumento de temperatura para tratar o leite, como a pasteurização, possuem alto custo energético e podem comprometer a qualidade da mercadoria, alterando sua cor, sabor ou até destruindo suas proteínas, a utilização da luz ultravioleta nesse processo traz diversas vantagens: “Além de apresentar um custo 250 vezes menor que a pasteurização, o tratamento do leite com a luz UV aumenta o tempo de prateleira do produto, modifica menos suas características originais, reduzindo a perda de nutrientes, e tem a mesma segurança alimentar do procedimento tradicional”, explica Daniel.

Do ponto de vista industrial e econômico, a exploração das proteínas do soro do leite é de grande relevância. Além de ser importante para a produção de diversos produtos, como biscoitos, iogurtes e suplementos alimentares, o soro do leite atua no estímulo de ganho de massa muscular, manutenção da saúde óssea e ainda contribui para a perda de peso, já que reduz a sensação de fome e a produção de gordura corporal. Há cerca de 10 anos, todo esse potencial não era aproveitado, tanto que o soro do leite era considerado resíduo e servia de ração para animais. Com o interesse da academia em pesquisar sobre o produto e a abertura do mercado para sua utilização, esse cenário tem mudado.

Segundo Daniel, há uma força-tarefa mundial que visa o desenvolvimento de proteínas mais nutritivas, e o desafio tem instigado centenas de cientistas. Agora, a partir dos resultados apresentados no estudo de Juliana, os pesquisadores buscarão aprimorar a proteína irradiada com a luz com o objetivo de aumentar ainda mais sua qualidade. O docente afirma que o procedimento adotado no trabalho já está pronto para a utilização na indústria, podendo ser aplicado diretamente no soro do leite para modificar a estrutura da betalactoglobulina.

A pesquisa desenvolvida faz parte do projeto temático “Novel aging: tecnologias e soluções para fabricar novos produtos lácteos para um envelhecimento saudável“, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), em parceria com a Innovation Fund Denmark. Além do IQSC, estão envolvidas no Projeto as duas unidades da Embrapa em São Carlos, a Instrumentação e a Pecuária Sudeste, a Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Araraquara e a Universidade de Copenhagen, da Dinamarca.

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