2015

Das montanhas libanesas para Bertioga

Miguel Seiad Bichir, ou seu Migué Turco, como era conhecido carinhosamente pelos amigos, chegou à Vila em 1913.

Da Redação
Publicado em 13/12/2018, às 14h10 - Atualizado em 26/08/2020, às 22h01

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Arquivo familiar
Arquivo familiar

A antiga Vila de Bertioga, o atual bairro Centro, era o ponto de concentração das primeiras famílias estabelecidas na cidade, já que oferecia facilidades de pesca no canal. Era ali, também, que ficava o antigo trapiche que, anos mais tarde, cedeu lugar para o píer Licurgo Mazzoni, onde aportavam as barcas com imigrantes de vários lugares do mundo em busca de melhores condições de vida no Brasil. Entre eles, em 1913, desembarcou Miguel Seiad Bichir, aos 17  anos, originário de uma aldeia do Líbano chamada Dhouma. Das terras rochosas libanesas, Miguel aportou, primeiro, nos Estados Unidos, onde tinha parentes, depois de um tempo veio para o  Brasil e se instalou em Itanhaém, também em casa de familiares. Sua veia desbravadora sempre falava mais alto e ele seguiu sua caminhada até estabelecer residência em Bertioga, definitivamente.

Imagem acervo site

Aqui, fez aquilo que sabia: trabalhar como mascate. De Bertioga a São Sebastião, a pé. Foi neste trajeto que conheceu sua mulher Isabel, uma caiçara de Boissucanga. Dos 11 filhos nascidos, nove sobreviveram.

 Conhecido como Migué Turco, além de mascate, foi pescador, lenhador, comerciante, dono de terras e produtor de cachaça. Eram tempos difíceis. No morro da Senhorinha tinha uma fonte na qual todos os moradores da Vila apanhavam água. Energia elétrica era um luxo escasso, e as famílias contavam apenas com gerador, desligado às dez horas da noite. 

Aos finais de semana, Migué Turco reunia a família e outros vizinhos libaneses, como João Sabino, Jorge Isac, Elias Nehme, entre outros, e, ao som de seu gramofone, único da vila, dançavam e cantavam músicas da terra. Ele sustentava a família com verduras, frutas nativas e legumes cultivados no quintal de sua casa. 

No sítio da Praia Preta, conhecido como Casa de Pedra, localizado na ilha de Santo Amaro, ele tinha um engenho e produzia a famosa cachaça da Praia Preta, chamada Praia Ninha. Além do engenho, a propriedade contava com um bananal, criação de cabras e cavalos. 

Tudo era vendido em sua venda, o Armazém de Secos e Molhados do Migué Turco, em frente ao canal. Nos rótulos da cachaça, Bichir escrevia versos. “Era uma vida difícil. Para transportar a banana e a cachaça descíamos dois morros a pé ou, a  cavalo”, comenta Jamile Bichir, uma das filhas. A propriedade foi vendida no final da década de 1960.  

Imagem acervo site

 Nesta época, a população de Bertioga não passava de cinco mil habitantes, e Jamile lembra que a pesca era uma das atividades comuns entre os moradores. Durante o inverno, as tainhas eram pescadas no rio Itaguaré, e os peixes, distribuídos. No verão, acontecia a chamada pesca de fundo, quando se pescava robalo, pescada e outras espécies.

 De pai para filho e de filho para neto, a pescaria continua na tradição da família. O germe da primeira festa da tainha, segundo contam, teria nascido na casa de um dos filhos, Seiad Bichir, casado com a caiçara Raquel, de Juquey. Eles tiveram quatro filhos: Miguel, Aluisio, Edson e Zaine. Dois de seus filhos, Zaine e Miguel Seiad Bichir Neto, aniversariam em junho, e o pai, para comemorar, trazia muitas tainhas; a comemoração entre parentes e vizinhos ocorria com fartura de peixes e acabou por gerar a Festa da Tainha, realizada até hoje na cidade. Outras versões que correm na cidade dizem que a festa surgiu no Indaiá, para comemorar fartura de peixes que havia então.

 Aluísio, um dos filhos de Seiad Bichir e Raquel, diz que seu pai, assim como o avô, era pescador e ambos  

 pescavam em frente ao Forte. Embora o progresso tenha terminado com a pesca como meio de subsistência, a família mantém   até hoje a atividade. “Tempos atrás, quando chovia, enchíamos a cozinha, banheiro e quarto com peixes, a maioria parati. Quando chove, os paratis - ou paratiocas ou muriquiocas-, sobem com as águas da chuva”, conta Aluísio.

 O avô, o velho Migué Turco, e o filho Seiad Bichir mantiveram os costumes trazidos na mala preta do mascate libanês e apaixonaram-se pela pesca. O desejo de vencer também era comum entre pai e filho. Este último, com o desenvolvimento do então vilarejo, atuou em várias frentes como o pai, mas em um cenário diferente: foi coveiro, subdelegado, policial e depois entrou na prefeitura de Santos como fiscal. Aos finais de semana, vendia imóveis.

 Na terceira geração, Miguel Seiad Bichir Neto, advogado, escritor e ex-vereador, sente falta dos tempos passados: “Completo 65 anos no dia 23 de junho, e do meu pessoal contemporâneo não tem 30 famílias. Escrevi um texto que é a conversa entre dois caiçaras. Um deles, que tinha tomado umas e outras, e o Daniel (o Dito); alguém perguntou: `aonde anda essa gente antiga de Bertioga? E ele disse: está no cemitério´”. Miguel lamenta: “Hoje, minha ligação afetiva com a cidade está muito tênue. Vai viver em minha lembrança, porque essa ligação é responsável pelo que sou”  

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