2015

As lembranças do Recanto do Itaguá

A pesca e o jeito simples de viver são valores tradicionais mantidos ainda por moradores, como Alcides Pedro do Rosário, que vivenciou momentos da Revolução de 30

Da Redação
Publicado em 07/03/2019, às 12h10 - Atualizado em 26/08/2020, às 22h02

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Arquivo familiar
Arquivo familiar

 Conhecido como Doca, ele é bertioguense da nata, nascido há 94 anos no Recanto do Itaguá, região de Boraceia 1, onde vive até hoje a sua vidinha simples, de roça. Em tempos idos, eram imensos sítios de bananal. As condições precaríssimas de acesso à Vila exigiam dos moradores verdadeiras artimanhas para resolver situações. Como a que ele viveu, certa   vez, quando sofreu um acidente durante a derrubada de árvores, o que prejudicou sua coluna. O jeito foi valer-se de uma benzedeira.

O tempo veio junto com o progresso e este trouxe normas e leis. Doca perdeu terras em prol da preservação ambiental e o extrativismo deixou de ser o seu sustento. Ele conta que foi, então, trabalhar como pescador, numa  época em que já havia constituído sua família. Construiu sua casa, a menos de 500 metros do mar, onde vive até hoje. “Naquela época, não precisava comprar alimento, tinha a roça e dela eu extraia farinha, feijão, cará, verdura, arroz. O desenvolvimento acabou com isso. Fomos proibidos de plantar por causa da preservação ambiental”.

Imagem acervo site

Se na Vila de Bertioga os tempos já eram difíceis, quem vivia no Recanto do Itaguá criava soluções com o que a natureza oferecia. Assim, tudo era improvisado. Não havia sequer um lampião. “O fígado do cação pescado era derretido para fazer azeite, colocado em uma vasilha, com um furo e um pedaço de roupa velha para iluminar as longas noites”, conta. O café,por exemplo, plantado e colhido nas roças, era adoçado com o caldo da cana.

O pescado era farto e, além de ser dividido entre as famílias, boa parte dele era limpa e salgada, para ser trocada ou vendida. “Descia gente pelo morro, do outro lado da rodovia Rio-Santos, de Mogi e outros lados, para trocar mercadoria como farinha de milho e feijão pelo peixe. Muitos pagavam para levarmos os peixes nas costas daqui para Mogi. Eram dois a três dias de viagem pela mata. Eu mesmo fiz essas viagens para levar os peixes e fazia compras”, comenta Doca.

O pequeno bairro se resume a uma igreja, poucas casas ao redor, o bar do Doca e outros pequenos estabelecimentos, em um cenário que até hoje é preservado com as características caiçaras. A igreja, construída há cerca de 35 anos, pelos moradores, é uma pequena capela. Antes dela, os pescadores encontraram, em 26 de julho de um tempo longínquo, a imagem de uma santa, denominada Sant´Anna. Os habitantes do lugar passaram, então, a cultuar a imagem na casa de uma moradora, parente de Doca.

Imagem acervo site

Assim nasceu o tradicional festejo de Sant´Anna, com a família de Doca. “Quando chegava perto da data comemorativa, caçávamos na mata, ficávamos dias e trazíamos cotia, tatu, paca, servidos ao longo do dia”, conta Doca. Neste quase um século de vida, Doca vivenciou fatos importantes, tais como a Revolução de 1930. “Eu era criança e um rapaz do Indaiá - que não recordo mais o nome - era delegado e amigo dos meus pais. No final dos anos 20 e início da década de 30, havia muito soldado na região por causa da revolução. Éramos avisados para não passarmos a noite em casa, então nos escondíamos na mata. Assim, ficamos por oito dias escondidos em um barraco de folha de palmito”, lembra. 

Uma ocasião, viu um navio, ao amanhecer, atirando contra a Barra do Una (praia de São Sebastião), na qual dois policiais, Ercílio e Arcílio, escondiam-se em barranco detrás da praia. “Um tal de Chico Bastos trazia munição para eles; a tripulação do navio descobriu e deram um jeito de ele não abastecer mais os soldados da Barra do Una, até que a munição deles acabou”  

Nem a igreja da Barra do Una, construída de pau a pique, escapou. Os tiros atravessaram o interior da capela e o barro do fundo da igreja caiu no chão. “Se fosse por mim, arrumava a igreja, mas nunca consertei para mostrar aos meus netos”. 

Naquela época, era raro alguém passar pelo Recanto do Itaguá. Depois, com a Rio-Santos, começou a chegar gente de todos os lugares, até políticos. “O primeiro carro  que passou por aqui foi em 1955. Era do João Sabino, que tinha uma caminhonete e ele nos levava até Guaratuba, onde fizeram uma espécie de balsa, construída pelo Sabino”. Até então, não era possível fazer a travessia, exceto por barcos.

 Com a nova estrada, houve melhora de transporte, explosão imobiliária e as roças foram sumindo, assim como os peixes. Além disso, a estrada trouxe algumas lembranças tristes, como a morte de um irmão e de uma de suas filhas. O progresso também traz violência.  

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