*Foto: Arquivo Pessoal
Por Marina Veltman
A intensa serração que cobria as ruas da Universidade Brás Cubas, em Mogi das Cruzes, era a maior preocupação dos universitários sebastianenses que embarcavam nos ônibus para retornar a São Sebastião, na noite de quarta-feira, 8. Fazia muito frio e os alunos reuniram-se, como é rotineiro, para aguardar o embarque nos ônibus com destino a seus bairros, um transporte gratuito ofertado pelo município como forma de garantir aos jovens a chance de se graduarem nos cursos não existentes na cidade.
Algumas semanas antes, uma confraternização entre os jovens dos seis ônibus da rota Mogi-São Sebastião havia sido realizada, com sucesso, e outra estava sendo programada para o segundo semestre. Quem conta é Josekarlla Mel Vieira Dão, estudante de ciências contábeis e moradora de Juquehy: “Muita gente estudou junto ainda no colégio, então mesmo quem não estava no mesmo ônibus, ou na mesma faculdade, acabava se conhecendo, sabíamos quem era quem”.
Fazendo o percurso da serra da rodovia Mogi-Bertioga duas vezes por dia, cinco dias na semana, os alunos já estavam acostumados ao trajeto. “Falhas mecânicas e furos de pneus eram relativamente frequentes, mas nunca tivemos relatos de acidentes com vítimas, nada que criasse uma grande tensão”, conta a estudante.
Após embarcarem no ônibus, foi com positiva surpresa que os alunos perceberam que a neblina havia se dissipado. Porém, ao chegar no km 84, já no fim da serra, a boa visibilidade apresentou um cenário tenebroso: um dos ônibus da União do Litoral, empresa responsável pelo transporte dos universitários sebastianenses, estava tombado na beira da estrada. “O ônibus em que eu estava e outros três pararam e nós saltamos imediatamente para socorrer os passageiros”, relata Karlla. “Foi muito chocante. Nossos conhecidos ali dentro, agonizando, pedindo ajuda... um cenário terrível de se ver”, lembra a estudante.
Precisar ajudar e não saber como
Diante de tal cenário, os jovens se viram impelidos a agir rapidamente. “Não tínhamos experiência em resgate, mas víamos pessoas do nosso convívio implorando por socorro. Uma sensação de que precisamos ajudar e sem saber como. Horrível”, conta a universitária.
Os jovens dos três ônibus do comboio se organizaram. Montaram uma “força-tarefa” de resgate. Alguns rapazes entraram pela frente e teto do veículo, que foram completamente destruídos, e retiraram do interior do ônibus os passageiros que conseguiam alcançar. Um outro grupo, do lado de fora, amparava os removidos, checava quem estava mais ferido e atendia as vítimas como podia. “O pior era o frio. Estava congelando, e para eles ainda tinha o agravante de que estavam molhados, porque o ônibus tombou em uma vala com água. Eu e muitos outros fomos tirando nossos casacos e buscando cobertores nos veículos para cobri-los”. Lidar com o grave cenário exigiu presença de espírito do grupo. “Já tinha visto uma pessoa ferida, mas ver tantas pessoas juntas é bem diferente. Fora os mortos, mas que nem dava pra pensar, porque tínhamos que focar em quem precisava e podia ser ajudado”, conta.
Até a chegada do resgate - acionado pelos jovens, que ligaram para políticos, polícia e bombeiros - cerca de dez passageiros já haviam sido removidos dos escombros. Enquanto o resgate acontecia, os jovens seguiam amparando fisicamente as vítimas, e também atendendo pedidos de telefonemas para familiares, para avisar do ocorrido. Conforme os parentes das vítimas chegavam ao local, outro desafio: dar as notícias. “Acabamos tendo que passar a informação para alguns pais de que seus filhos tinham falecido, outros que os filhos estavam feridos... Mesmo quando avisávamos que os filhos estavam bem, eles queriam ver com os próprios olhos, claro. Ver a dor deles foi duro”, conta a jovem.
Motorista avisou que iriam bater
Segundo relatado para Josekarlla por alguns dos estudantes socorridos no acidente, o veículo, conduzido por Antônio Carlos Silva, teria perdido o controle um pouco antes da colisão. “O Carlos (motorista) avisou que era para apertarem os cintos e se segurarem, que ele tinha ‘perdido o carro’. Relataram que ele chegou a fazer duas curvas sem controle, mas que na reta do acidente, que terminava em uma ribanceira, ele teria pegado mais velocidade e, com medo de cair lá embaixo, optou por jogar o ônibus para a esquerda, derrubando ele na vala. Ele era marrento, mas querido. De verdade eu acredito que ele fez isso para tentar salvar alguns dos passageiros. Se caísse, seria ainda pior”, afirma.
A vida após o trauma
Mesmo já na segurança de sua casa, as lembranças do acidente assombram a universitária. “Fico pensando no que podíamos ter feito além do que fizemos. Revisitando a cena e lamentando não ter me atentado para tal pessoa, me deitado junto de uma outra, para aquecê-la melhor... Não consigo tirar a imagem deles agonizando da minha frente, de pensar no sofrimento dos pais que perderam seus filhos ou, como mãe, de me pôr no lugar de uma amiga, que tem filho de cinco anos e faleceu”, lamenta a jovem de 26 anos, mãe de Arthur, de seis.
O receio de que algo semelhante possa voltar a acontecer assombra não apenas os jovens, como também seus familiares. “Minha mãe não quer mais que eu vá com o ônibus. Terei que rever toda minha vida para tentar mudar para perto da faculdade até terminar o curso”, conta.
Independentemente das dificuldades e trauma, abandonar os estudos não é uma opção, pelo menos para a jovem: “O sonho deles morreu ali, mas o nosso tem que continuar. Me formar virou uma questão de honra. Por eles”, completa.
Até o fechamento dessa edição, dados oficiais apontavam 18 óbitos em decorrência do acidente, dos quais 17 estudantes e o motorista do veículo.
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