INTOLERÂNCIA RACIAL

“Racistas não ficarão impunes”: mulher agredida por causa de palito de dente quer protesto em Santos

Analista afirma que levou voadora de proprietário de bar durante discussão motivada por insultos racistas da mãe dele. Defesa dos donos do bar apresenta outra versão

Thiago S. Paulo
Publicado em 02/06/2023, às 13h02 - Atualizado às 15h09

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Analista de atendimento ao cliente Latoya Ferraz (à esquerda) acusa proprietário de bar em Santos e sua mãe de agressão e insultos racialmente motivados. Ao centro, foto de escoriações divulgada por Latoya. CAPA - “Racistas não ficarão impunes”: mulher agr - Imagem: Acervo / Latoya Ferraz e Gabriela Ventura
Analista de atendimento ao cliente Latoya Ferraz (à esquerda) acusa proprietário de bar em Santos e sua mãe de agressão e insultos racialmente motivados. Ao centro, foto de escoriações divulgada por Latoya. CAPA - “Racistas não ficarão impunes”: mulher agr - Imagem: Acervo / Latoya Ferraz e Gabriela Ventura

A mulher negra que acusa os proprietários de um bar em Santos de agressões racialmente motivadas disse que vai levar o caso às últimas consequências e não descarta articular um protesto no local das agressões. “Eu espero que a gente consiga convocar um ato pra que todos os santistas saibam o que aconteceu, que racistas não ficarão impunes e que aqui na Baixada tem muita gente contra isso”, afirma a analista de atendimento ao cliente Latoya Ferraz de 29 anos.

O que aconteceu

Em entrevista ao Portal Costa Norte, ela conta que sofreu as agressões quando estava em uma confraternização com um grupo de amigas no Merlô, um bar na Galeria Casa Velha no Gonzaga, na noite de terça (30).

Enquanto fumava com sua amiga, a consultora de projetos Gabriela Ventura de 32 anos, Latoya afirma que sofreu insultos racistas de Margaret Zannin, um mulher branca de 67 anos, mãe do proprietário do Bar da Casa, localizado na mesma galeria, após permitir que um ambulante pegasse um palito de dente em uma das mesas.  

“Eu e a Gabriela não vimos problema, era um palito de dente. Nisso, essa senhora veio muito agressiva pedindo pro moço largar o palito de dentes ‘Deixa isso aí, pode ir largando’, extremamente rude com o rapaz. Aí o rapaz, que era negro, deixou o palito e foi embora”, relembra Latoya.

“O rapaz não tinha feito nada de mais, só tinha pedido um palito de dentes”, conta Gabriela. “A senhora veio com bastante agressividade se dirigindo ao rapaz como se ele fosse um rejeito, enxotando o rapaz. ‘Sai daqui, sai daqui’”.

Surpresa, a dupla resolveu questionar a idosa. Segundo a versão delas, teve início uma discussão que descambou para insultos com menções à pele escura de Latoya por parte de Margaret.

“O filho dela entrou na discussão. Nisso, a mãe dele retornou e disse assim 'não fala mais com essa daí porque ela...' E fez um gesto na mão com menção à minha pele", recorda-se Latoya com a voz embargada. "Eu falei, ‘Não acredito que você tá fazendo isso’ e ela ‘É’ e continuou fazendo o gesto”.

A amiga Gabriela confirma: "A Latoya perguntou se a idosa estava fazendo isso porque ela era negra. E ela, a idosa, continuou: 'É, eu tô tendo problema por causa disso aqui' apontando pro próprio braço em referência à cor da pele da Latoya. Ela repetiu esse gesto mais duas vezes”.

Ambas afirmam que, àquela altura, chamaram a idosa de racista e saíram do local rumo ao outro bar nos fundos da galeria, mas foram interpeladas novamente por Margaret. “Fui sair do local com minha amiga por um corredor e ela veio atrás discutindo pelo palito de dente. E, ali, estava claro que não era mais sobre o palito de dente”, diz Latoya.

Gabriela afirma que Latoya revidou um empurrão de Margaret e acabou recebendo uma voadora pelas costas de Fabiano Zannin, filho da idosa e proprietário do Bar da Casa. “Quando houve esse empurrão e a Latoya empurrou a senhora de volta, os funcionários já intervieram e separaram as duas. Mesmo assim, o filho dela veio correndo e deu uma voadora nas costas da Latoya. As duas já estavam contidas e separadas. Ele deu essa voadora na Latoya e ela caiu no chão com a própria mãe dele. A Latoya se machucou e a mãe dele se machucou. Ele agiu com tamanha violência que nem pensou que poderia machucar a própria mãe, mas também uma racista vai criar o filho como?", questiona Gabriela.  

“Eu senti uma porrada muito forte nas minhas costas. Ele [Fabiano], um homem bem maior que eu, me deu uma voadora. Pelas costas. Eu caí em cima dela [Margaret], bati o cotovelo e o joelho no chão”, diz Latoya.

Acionados por Gabriela, policiais militares conduziram Latoya para receber atendimento médico em uma Unidade de Pronto Atendimento e, em seguida, para prestar depoimento no 7º DP de Santos. Margaret e Fabiano também foram à delegacia cerca de três horas depois por meios próprios, disseram Latoya e Gabriela.

“Foi muito doloroso também ver que as agressões verbais e físicas foram direcionadas para a pessoa de pele mais escura”, lamenta Gabriela, que se identifica como uma mulher negra de pele clara. “Eu estava junto, estava desde o início da discussão, participando ativamente, e desde o princípio eles não fizeram nenhuma menção a mim. Todos os comentários, insultos e a agressão física foram direcionados pra Latoya”.

O outro lado

A reportagem tentou contato com Margaret e Fabiano, que não se pronunciaram. Por meio de nota, o advogado do Bar da Casa, Bruno Bottiglieri, apresentou outra versão dos fatos em que afirma que o estabelecimento “não compactua com nenhuma forma de discriminação” e acusa Latoya de estar bêbada e “agredir brutalmente” Margaret com “um golpe na cabeça”.

Segundo defesa do Bar da Casa, Margaret quebrou dois dedos Margaret - “Racistas não ficarão impunes”: mulher agredida por causa de palito de dente por donos de bar em SP quer protesto Mulher com dedos enfaixados (Imagem: Acervo Pessoal)

Na versão da defesa do Bar da Casa, Fabiano deu uma voadora em Latoya para interromper uma torção que quebrou dois dedos da mão de sua genitora. A defesa também afirma que as acusações de racismo de Latoya contra Margaret “são caluniosas” e que a idosa está com medo “pois tomou conhecimento através de rede social acerca de mensagens de que iriam lhe atear fogo”.

Latoya e Gabriela afirmam que a versão da defesa do Bar da Casa é delirante. “Eles já estão tentando me deslegitimar falando que depois de duas taças de vinho eu já não sei o que é racismo”, diz Latoya.

“Eu estou muito indignada com todas as mentiras que eles estão espalhando por aí”, completa Gabriela. “O único momento em que a Latoya teve algum contato físico com ela [Margaret] foi quando ela empurrou a Latoya e a Latoya, reagindo a esse empurrão, a empurrou de volta. Esse foi o único contato. Não houve agressão. A Latoya não torceu a mão dela”.

Protestos

Latoya afirma que, apesar de estar machucada física e emocionalmente, pretende levar o caso adiante. “Já constitui uma advogada para trabalhar nisso. É horrível, está muito desgastante, sei o que vou enfrentar, mas eu vou levar isso pra frente porque não é a primeira vez que isso acontece comigo, que acontece comigo em Santos, com pessoas à minha volta. Eu nunca tinha passado por uma situação de racismo tão violenta. Fui agredida por um homem branco no meio do Gonzaga. A audácia do racismo nunca tinha chegado tão forte em mim que é de me agredir fisicamente, de me bater, por eu ser preta”.

Fabiano, proprietário do Bar da Casa (à esquerda) e sua mãe Margaret durante depoimento na noite das agressões. Defesa nega motivação racial Proprietários Bar da Casa - “Racistas não ficarão impunes”: mulher agredida por causa de palito de dente por donos (Imagem: Gabriela Ventura)

A analista diz que não descarta participar de protestos antirracistas no local das agressões. “Eu e minha advogada estamos em contato com alguns movimentos negros aqui da Baixada e de São Paulo. Eu espero que a gente consiga convocar umato para que todos os santistas saibam o que aconteceu, que racistas não ficarão impunes e que aqui na Baixada tem muita gente contra isso. Eu desejo que isso seja um aprendizado pra eles. Que eles saibam que nem todo mundo vai suportar calado o racismo deles. Desejo que eles aprendam que a gente não vive mais no mundo que a gente vivia onde todo mundo ficava calado e nada acontecia. Esse foi um ato criminoso e eu espero que eles paguem por isso”.

Gabriela apoia a iniciativa. “A gente pretende levar isso adiante e punir esses racistas pra que eles não se sintam à vontade e impunes pra fazer esse tipo de coisa com outras pessoas”.

SSP, Galeria Casa Velha e Merlô

Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) disse que o caso foi registrado como injúria racial e vias de fato na Central de Polícia Judiciária de Santos e segue em investigação.

Contatada, a Galeria Casa Velha, onde se deram as agressões, não se manifestou. Ao portal g1, a Galeria disse que está acompanhando a situação com a polícia e não compactua com qualquer tipo de discriminação ou agressão.

Em nota divulgada nas redes sociais, o Merlô, bar na mesma galeria onde as amigas estavam na noite das agressões, se solidarizou com Latoya, repudiou atos de preconceito e discriminação e disse que acompanha as investigações. “Infelizmente, [Latoya] foi vítima de racismo covarde dentro do espaço coletivo em que estamos localizados por pessoas que não representam o espírito plural que sempre teve a Galeria Casa Velha. Aqui é, sempre foi e sempre será um lugar de extremo acolhimento e luta por um mundo melhor”, disse o Merlô. 

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