MEXILHÕES DROGADOS

Cocaína despejada na Baía de Santos criou mexilhões mutantes, descobrem cientistas

Em pesquisa pioneira, oceanógrafos demonstraram que há tanta cocaína sendo diluída no mar do litoral de SP que mexilhões estão sendo drogados. Iguaria de consumo humano, moluscos apresentam alterações de DNA e desequilíbrio no ciclo reprodutivo - e isso pode ser início de sério dano ambiental

Thiago S. Paulo
Publicado em 17/08/2023, às 12h34 - Atualizado às 14h27

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Pesquisadores descobriram altas concentrações de cocaína nas águas da Baía de Santos Baía de Santos 2 - Cocaína despejada na Baía de Santos criou mexilhões mutantes, descobrem cientistas Vista aérea da Baía de Santos - Imagem: Reprodução / Flávio R. Berger / FotoImagem
Pesquisadores descobriram altas concentrações de cocaína nas águas da Baía de Santos Baía de Santos 2 - Cocaína despejada na Baía de Santos criou mexilhões mutantes, descobrem cientistas Vista aérea da Baía de Santos - Imagem: Reprodução / Flávio R. Berger / FotoImagem

Um estudo conduzido por pesquisadores da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) chegou a uma conclusão surpreendente: altas concentrações de cocaína na Baía de Santos estão drogando os mexilhões que habitam aquelas águas.

Em análises do organismo dos mexilhões cocainados, os pesquisadores descobriram que a exposição à droga no mar está causando mutações no DNA e desregulando o ciclo reprodutivo dos moluscos. Mas não para por aí. Uma vez que a espécie é ambientalmente chave, essas alterações podem gerar uma reação em cadeia de danos ao ecossistema marinho do litoral paulista.

O estudo é parte da tese de doutoramento em oceanografia da bióloga marinha Mayana Fontes, com orientação do professor associado do Departamento de Ciências do Mar da Unifesp Camilo Seabra. Em entrevista, os cientistas explicaram como foram feitas as análises, porque isso pode ser a ponta do iceberg de um problemão ambiental e de onde pode estar vindo a cocaína que está intoxicando os mexilhões.

Mexilhões analisados durante a pesquisa. Altas concentrações de cocaína, mutação e desequilíbrio reprodutivo Mexilhões analisados - Cocaína despejada na Baía de Santos criou mexilhões mutantes, descobrem cientistas Colagem com duas imagens de mexilhões em (Imagem: Acervo pessoal / Mayana Fontes)

Atualmente realizando medições parecidas em enguias na costa italiana, Mayana relata que o estudo com os mexilhões no litoral paulista começou com a aferição da concentração de cocaína na água.

Para isso, durante 24 meses, ela e Seabra analisaram a água coletada em pontos estratégicos da Baía de Santos. “Ao final de cada estação do ano, a gente fez as coletas de água e sedimento para avaliar quais eram as concentrações de cocaína”, diz a oceanógrafa. “Fizemos as análises químicas e conseguimos delimitar qual era a concentração e variação da quantidade de cocaína na água ao longo do ano”. Os testes, complementa ela, revelaram algum nível da droga na água em todos os períodos e esse foi o primeiro alerta.

“Percebemos que a cocaína e o seu principal metabólito humano que é a benzoilecgonina, aquela que apareceu na urina do Maradona, do Guerreiro, elas estão presentes o ano inteiro na água em Santos, na Baía de Santos”, relata o professor Seabra. A Baía de Santos também banha parte das faixas costeiras de Praia Grande, Guarujá e São Vicente.

Pesquisadores descobriram altas concentrações de cocaína nas águas da Baía de Santos Baía de Santos 2 - Cocaína despejada na Baía de Santos criou mexilhões mutantes, descobrem cientistas Vista aérea da Baía de Santos (Imagem: Reprodução / Flávio R. Berger / FotoImagem)

Determinadas as quantidades de droga na água, Seabra e Mayana partiram para a mensuração de eventuais impactos à vida marinha. A escolha dos mexilhões para tal medição não se deu por mero acaso.

Seabra explica que, além de serem consumidos por humanos, eles são vitais no ecossistema marinho da Baixada Santista. “Os mexilhões são filtradores sésseis, ou seja, são animais que não se movem. Isso os torna bons bioindicadores da poluição marinha. Os mexilhões também são uma espécie do costão rochoso, o fluxo de energia passa muito por eles. Eles têm uma importância ecológica do ponto de vista de cadeia alimentar”, justifica o professor.

Com a quantidade de droga na água aferida e escolhida a espécie endêmica que poderia indicar os impactos, os pesquisadores coletaram várias dezenas de mexilhões nos mesmos locais e também reproduziram em laboratório as mesmas quantidades da droga do mar,  expondo os mexilhões a elas.

Depois, eles compararam o organismo dos mexilhões chapados com o de mexilhões não expostos à droga e descobriram que os mariscos expostos têm concentrações anormais do composto da cocaína. As medições indicaram que, além de uma série de alterações metabólicas, os mexilhões cocainados estão sofrendo mutações.

“A gente constatou [no organismo dos mexilhões expostos à cocaína] alterações no balanço energético, ou seja, alterações metabólicas importantes em processos reprodutivos, em processos de captura de alimento e um dos resultados foram algumas alterações no DNA, o que chamamos de DNA Strand Break, uma quebra da molécula”, detalha Mayana.

Embora seja uma mutação, a alteração no DNA dos moluscos em nada se compara com o lugar comum que o termo possa sugerir. “O desdobramento desse dano em DNA não é necessariamente aquilo que alguém pode imaginar, ‘poxa, vai aparecer um mexilhão mutante’”, explica o professor Seabra. “Não é nesse sentido, [a mutação] é mais no sentido de inibir o crescimento e a reprodução. Isso tem um impacto ecológico importante, porque uma população que cresce menos e se reproduz menos, vai desaparecendo aos poucos. Ou seja, isso que foi descoberto pode ter uma repercussão ambiental forte e um impacto ecológico importante”.

Oceanógrafos Camilo Seabra e Mayana Fontes. Estudo é conduzido com apoio da Fapesp, a agência de fomento à pesquisa científica de São Paulo Seabra e Mayana - Cocaína despejada na Baía de Santos criou mexilhões mutantes, descobrem cientistas Colagem com dua (Imagem: Acervo Pessoal)

Os mexilhões estão drogados mesmo?

Em teoria, o princípio de descoberta da acumulação da cocaína no organismo dos mexilhões é simples, ilustra Seabra. “Como se acumula cocaína? Como se acumula qualquer coisa. Como se acumula dinheiro? Quando entra mais do que sai.”

Mayana complementa. “Como era esperado, os mexilhões que estavam expostos a essas substâncias apresentaram um nível maior [de concentrações do composto da cocaína]".

Seabra desenvolve. “Então, quer dizer: os mexilhões estão sendo expostos a concentrações de cocaína na água superiores àquelas que eles conseguem metabolizar e excretar. Então ela está ficando retida neles. Pro mexilhão, o que essa cocaína faz? Essa cocaína causa danos no DNA por estresse oxidativo, mas ela também desregula hormônios importantes para a reprodução”.

A pesquisa também mostrou que nos moluscos expostos à droga, os níveis de dopamina e serotonina eram maiores do que nos não expostos. Ou seja, além das mutações, as medições também revelaram que a exposição dos mexilhões à cocaína desregula neurotransmissores como os nossos.

“Claro, nos mexilhões não vai dar sensação de prazer nem de euforia, como provoca em usuários humanos da droga”, distingue o pesquisador para arrematar em seguida. “Mas esses neurotransmissores, eles controlam o quê? Eles controlam a formação de gametas, a formação de espermatozoides e de óvulos, e também o tempo certo da reprodução, que é o tempo da desova”.

Trocando em miúdos, de certa forma, os mexilhões realmente estão drogados e, por isso, apresentaram desequilíbrios nada desprezíveis em seu processo reprodutivo.  Em tese, o que foi verificado nos mexilhões pode estar acontecendo com outros seres marinhos que coabitam as mesmas águas que eles, mas são necessários mais estudos. “Esses neurotransmissores estão diretamente envolvidos nos processos reprodutivos de organismos aquáticos, tanto vertebrados como invertebrados”, esclarece Mayana.

Hipotéticamente, explicam os pesquisadores, o consumo humano dos mexilhões drogados não provocaria os efeitos da droga em uma pessoa. Apesar disso, não é sanitariamente recomendável o consumo humano destes mariscos porque a cocaína no organismo dos animais indica que eles possivelmente foram expostos a esgoto não tratado.

Baía de Santos, onde pesquisadores detectaram cocaína na água, banha parte da faixa litorânea de Praia Grande, Guarujá e São Vicente, além de Santos Baía de Santos - Cocaína despejada na Baía de Santos criou mexilhões mutantes, descobrem cientistas Mapa da (Imagem: Google Maps)

De pó em pó o mexilhão enche as brânquias, ou: de onde vem a cocaína que está drogando os moluscos?

Seabra afirma que é improvável que a cocaína que está contaminando os mexilhões seja refugo de laboratórios da droga nas áreas de mata da costa paulista ou resto das toneladas traficadas no Porto de Santos que de algum modo tenham se diluído nas águas.

A hipótese mais plausível, argumenta o cientista, é que a droga esteja chegando ao mar em milhares de pequenas quantidades por meio de esgoto doméstico não tratado. “É cocaína do esgoto. E a gente acredita nisso porque junto à cocaína sempre é encontrada cafeína que é um indicador clássico, já tradicional, de esgoto doméstico”.

“Então, tem que pensar que todo dia você tem pessoas que estão consumindo a droga naquela região”, acrescenta Mayana. “Essa droga é metabolizada, mas uma parte dela acaba sendo excretada de forma inalterada no esgoto. Então todo dia você tem no oceano um aporte de contaminantes. Entre os contaminantes, a gente tem as drogas”.

Ela esclarece que o processo de detecção e tratamento da droga em esgoto doméstico ainda engatinha no Brasil e no mundo. “Não é fácil remover esse tipo de substância do esgoto mesmo, é um problema de ordem mundial.  Tanto drogas ilícitas quanto produtos de higiene e cuidado pessoal, que a gente chama de contaminantes emergentes, a gente não tem um tratamento tão avançado. Não é um processo fácil fazer a remoção”.

Enquanto isso, os mexilhões, e sabe-se lá quais outros animais da fauna marinha, padecem.

O que diz a Cetesb

Questionada, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) disse que contaminantes emergentes sintéticos, como a cocaína, não são comumente monitorados no meio ambiente, mas reconheceu que eles têm o potencial ou são suspeitos “de causar efeitos adversos à fauna marinha e à saúde humana”.

A Cetesb acrescentou que a medição da maioria dos contaminantes emergentes nas águas ainda não é contemplada nas legislações: “A gama desses contaminantes é vasta, o que torna inviável monitorar todos os compostos produzidos pela atividade humana. Mas o avanço da instrumentação analítica tem permitido detectar e quantificar cada vez mais compostos”.

O órgão também disse que “vem monitorando alguns dos contaminantes emergentes nas águas superficiais e subterrâneas, como por exemplo, os medicamentos do tipo anti-inflamatórios e aqueles que desregulam o sistema endócrino, como a pílula anticoncepcional”.

A companhia também antecipou que, a partir do ano que vem, vai começar uma investigação de contaminantes emergentes, os chamados polifluorados (PFAs) presentes em 4.700 produtos químicos industriais. “[O estudo] será relevante para futuras tomadas de decisões na gestão dos recursos hídricos e deverá configurar um marco significativo para todo o Sistema Ambiental Paulista no que se refere aos contaminantes emergentes desta natureza”.

Por fim, a Cetesb ressaltou que a “[a medição da] qualidade dos alimentos, no caso os animais marinhos, não fazem parte das atribuições da agência ambiental paulista”.

E a Sabesp

A reportagem perguntou à Sabesp se a empresa mede a quantidade de cocaína nas águas ou esgotos do litoral de SP, e, se não mede, quando vai medir.  A reportagem também questionou a empresa se ela dispõe de tecnologia de tratamento de esgoto que possibilite reduzir as concentrações de cocaína na água do mar, e, se não dispõe, quando vai dispor e aplicar.

A Sabesp ainda não se manifestou. Caso a companhia se manifeste, esta reportagem será atualizada.

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