Jovem de 19 anos deixou Itatiba, após sofrer diversas agressões; psiquiatra dá dicas de como reconhecer relação abusiva e sair dela
Rebeca Freitas
Publicado em 08/03/2024, às 08h42
O Dia Internacional da Mulher é nesta sexta-feira (8), mas a realidade do gênero feminino ainda não é de igualdade salarial, tampouco de garantia de direitos humanos básicos, como segurança e respeito. O estado de São Paulo registrou 221 casos, ainda subnotificados, de feminicídio em 2023. A violência parte, muitas vezes, de homens próximos, como familiares ou cônjuges. O Instituto Maria da Penha aponta que, cerca de 70% das mulheres que sofrem violência doméstica, no Brasil, enfrentam também violência psicológica.
Irene Machado [nome fictício para preservar a fonte], de 19 anos, estava imersa em uma relação amorosa cuja família não aprovava. Na época que iniciou o namoro, morava com o pai e a irmã, em Itatiba, interior de São Paulo. Ela contrariou os familiares e insistiu em prosseguir no relacionamento, indo morar com o rapaz. Rapidamente, a fase de lua de mel, com carinho, cuidado excessivo e alegria, acabou; começaram as agressões físicas e psicológicas por parte de seu companheiro.
Ela conta: “Ele tinha muito ciúmes. Eu não podia ter amigos, ter contato com homens, nem usar algumas roupas. A culpa de tudo era sempre minha. Fiquei desanimada, perdi peso, minha família percebia que eu não era mais a mesma. Ao mesmo tempo, eu tinha vergonha de falar que estava sendo agredida, porque eu briguei com eles para estar naquela relação”.
De acordo com o psiquiatra Alexandre Valverde, relacionamentos tóxicos são gerados por um ciclo, que precisa ser reconhecido e interrompido. O médico explica que esse ciclo ocorre em fases, a começar pelo 'Bombardeio de Amor', quando o abusador cria um enredo de entusiasmo, proximidade, sedução e conquista, alçando a experiência de convívio ao limite superior do que poderia ser essa relação.
A próxima fase é o 'Gaslighting', um ataque à autoconfiança da vítima, o que a leva a questionar sua sanidade mental: "você está louca!”; "que exagero, não foi isso o que eu disse"; “estava só brincando. Você leva tudo a sério”; “deixa de drama!”. Essas frases formam o arsenal com o qual o abusador mina o moral da pessoa, a ponto de ela duvidar de si mesma. Os abusadores, geralmente, escolhem indivíduos fortes para parasitar e, depois, os reduz a meros provedores de suas necessidades.
Após ser gravemente agredida, e sua família ameaçada, Irene se refugiou em Bertioga, em busca de segurança. Aqui, ela reside com a mãe e o padrasto e recomeçou sua vida do zero. “Tive que pedir demissão do meu emprego, em Itatiba, e cancelar a matrícula da faculdade. Foi muito difícil, mas foi o melhor para mim naquele momento”, destaca a jovem; ela ressalta que foi difícil se desvencilhar emocionalmente de seu abusador, pois ainda tinha sentimentos por ele.
Valverde frisa que o ciclo de abuso persiste, até que a vítima se esgote, podendo levar ao 'Descarte', a partir do qual o abusador pode culpar a vítima. “Esse descarte pode se dar como Descarte Reverso, em que, após uma fase de abusos e desvalorização intensos e frequentes, a pessoa abusada acaba por decidir pôr fim à relação, oferecendo material para que o abusador possa se vitimizar e dizer que foi descartado pela pessoa abusada”, compartilha.
O fim do ciclo de relacionamentos abusivos é marcado pela ‘Repescagem’, momento em que os abusadores apostam na capacidade de resiliência e ansiedade de separação da pessoa abusada e jogam a isca da falsa mea culpa: “Agora eu amadureci”; “tudo vai ser diferente”; “foi só um deslize”; “você me ensinou a mudar”.
No intuito de ajudar outras mulheres, Irene explica o que deve ser feito, em situação similar: “Conte para alguém; meu erro foi ocultar da minha família. Minha mãe me perguntava como estavam as coisas e eu escondia. Conte para sua família ou até mesmo para um amigo, isso te dará forças para sair da relação, e essas pessoas podem te ajudar”, argumenta a jovem.
Alexandre Valverde aponta que o abusador, muitas vezes, tira a vítima de sua rede de apoio. Nestes casos, as mulheres podem buscar ajuda em canais oficiais de sua cidade, como o CRAS e a delegacia da Mulher.
4 dicas para reconhecer uma relação abusiva:
1. Se você reconhece alguma das fases desse ciclo, continue seus esforços para deixar cada uma delas bem clara para você. Junte forças, intime sua rede de apoio, além de preparação financeira, pois será necessário se fortalecer para atingir autonomia.
2. Se puder, termine essa relação. Não há saúde e harmonia no convívio com uma pessoa abusadora. Se não puder exercer o contato zero com a pessoa, mantenha a atitude da ‘pedra cinza’: não aprofunde essa relação (de don’t deep, em inglês: não se Defenda, não se Engaje, não se Explique, não Personifique). Tudo que disser será usado como munição contra você. 'Não personifique' significa reconhecer que esses ataques e esse parasitismo poderiam estar acontecendo com qualquer outra vítima, você só foi a da vez.
3. Se você está tomando medicamentos psiquiátricos para aguentar essa relação, repense seu tratamento com os profissionais que lhe acompanham. Procure ajuda de saúde mental e jurídica, caso não tenha ainda iniciado esse percurso.
4. Procure se informar sobre as neurodivergências; se a maneira como você se relaciona se enquadra nos modos de funcionamento das pessoas neurodivergentes. Será uma ótima oportunidade para se reconhecer, ao mesmo tempo em que reconhece os padrões de uma relação que pode estar minando sua vitalidade e vivacidade.
Sobre Alexandre Valverde
Alexandre Valverde é psiquiatra pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com master em filosofia contemporânea pela Sorbonne. Ele é autor do livro Ruptura, Solidão e Desordem – Ensaio sobre Fenomenologia do Delírio (FAP-Unifesp); também apresenta o podcast 'Fractais', que trata de temas ligados às neurodivergências. Alexandre foi autodiagnosticado com autismo e altas habilidades, aos 42 anos e, após confirmar o diagnóstico com outros profissionais, utiliza tais características como fonte para auxiliar outras pessoas no processo.
Rebeca Freitas
Formada pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp)