“A USP não está à venda, seja em troca de migalhas ou de milhões”, disse, em nota de repúdio, congregação interna da Universidade. Realização de evento com presença estimada de até 30 mil pessoas em meio à pandemia também foi repudiada
Da redação
Publicado em 22/11/2020, às 18h15 - Atualizado em 23/11/2020, às 09h30
A Universidade de São Paulo (USP), reconhecida por estar entre as maiores da América Latina, além de ser um grande polo de produção de pesquisa e conhecimento, ocasionalmente também produz grandes brigas intestinas. A pendenga atual envolve ao menos duas faculdades e a administração geral da Universidade. Na estrutura administrativa da USP, as faculdades têm relativa autonomia política a administrativa. Guardadas as devidas proporções, é como se cada faculdade fosse um estado e a administração geral ou reitoria fosse a presidência. A Universidade é o conjunto de todas as faculdades e nesse sentido serão referidas daqui por diante.
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O motivo do imbróglio foi a realização do “Boat Show”, um evento náutico de luxo, na raia olímpica, situada na cidade universitária, na Capital Paulista. A estimativa é de que cerca de 30 mil pessoas circulem no evento, iniciado no dia 19 e que vai até 24 de novembro. Maior feira náutica da América Latina, o ‘Boat Show’, atualmente em sua 23ª edição, é tradicionalmente realizado num centro de convenções da Capital, porém, em função da pandemia, os organizadores tiveram de encontrar outro lugar, e, com o apoio da reitoria da Universidade e da Faculdade de Educação Física, baixaram suas âncoras na raia olímpica da USP.
De acordo com informativo institucional, divulgado no Jornal da Universidade, o “espaço foi cedido pela Universidade” e de volta a faculdade vai receber 400 mil reais entre aluguel da raia, doação de barcos e divisão da renda acumulada com estacionamento. A estimativa é de que o evento possa movimentar um montante 260 milhões de reais.
Com isso, a Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) emitiu, nesta quinta-feira, 19, uma dura nota em que repudia a realização do evento e contesta as justificativas da administração geral da Universidade para tal. A FFLCH critica o risco sanitário de se realizar um evento com circulação de 30 mil pessoas em meio a uma pandemia. Risco, diz a nota, tanto para os presentes quanto para os alunos que moram na universidade e os funcionários que trabalham nela; a arrecadação de valores com estacionamento também é criticada pela Faculdade, uma vez que, segundo a nota de repúdio, as ruas do campus são espaços públicos que pertencem à cidade de São Paulo.
Outro ponto criticado pelo colegiado da FFLCH são os valores que a administração alegou que irá receber pela cessão do espaço, com a universidade recebendo 400 mil reais, parte deles em doações de barcos, num evento que arrecada 650 vezes esse valor. “A USP não está à venda, seja em troca de migalhas ou de milhões”, diz a nota da faculdade.
Um outro ponto criticado pela nota de repúdio da FFLCH é que a decisão de realizar o evento foi tomada pela administração geral da faculdade de forma pouco democrática, sem amplo diálogo com as demais faculdades que compõem a Universidade.
Contatadas, a Escola de Educação Física e Esporte, cujo diretor aparece em vídeo de promoção do evento, disse que a raia olímpica não pertence à escola. A reitoria da USP disse, por meio de sua assessoria, que reiterava as informações divulgadas em informe institucional.
Leia abaixo, na íntegra, o informe institucional da administração geral e a nota de repúdio da Faculdade de Filosofia Letras e Ciência Humanas da USP.
Raia olímpica vai sediar feira na área náutica de 19 a 24 de novembro
Valor arrecadado com cessão do espaço será utilizado para melhorias no local e no Centro de Práticas Esportivas
De 19 a 24 de novembro, a raia olímpica da USP será sede do evento São Paulo Boat Show, considerado o maior salão náutico da América Latina.
O espaço foi cedido pela Universidade e o valor da cessão inclui aluguel da raia (R$ 90 mil), melhorias na estrutura (balizamentos e troca de cabeamento), a doação de um barco de 18 pés, avaliado em R$ 70 mil, e 50% da renda do estacionamento do evento destinada ao Centro de Práticas Esportivas (Cepê), que, somados, chegam a R$ 400 mil.
O aluguel do Cepê e da raia olímpica é feito regularmente para eventos esportivos e comerciais e os valores arrecadados são revertidos em manutenção e melhorias dos dois espaços. Para se ter uma ideia, a raia tem custo anual de R$ 1 milhão para os cofres da Universidade.
A realização do evento atende às recomendações do Plano USP para o retorno gradual das atividades presenciais no campus.
Nota de repúdio da Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo à realização do “Boat show” na raia olímpica da Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira
A Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo vem, por meio desta, repudiar a realização do São Paulo Boat Show 2020, em curso, de 19 a 24 de novembro, na raia olímpica do campus do Butantã. Segundo o Jornal da USP (https://jornal.usp.br/institucional/raia-olimpica-vai-sediar-feira-na-area-nautica-de-19-a-24-de-novembro/), esse já é “considerado o maior salão náutico da América Latina”.Consta ainda que o “espaço foi cedido pela Universidade e o valor da cessão inclui aluguel da raia (R$ 90 mil), melhorias na estrutura (balizamentos e troca de cabeamento), a doação de um barco de 18 pés, avaliado em R$ 70 mil, e 50% da renda do estacionamento do evento destinada ao Centro de Práticas Esportivas (Cepê) que, somados, chegam a R$ 400 mil”.
São muito eloquentes as palavras “cedido”, “cessão” e “doação” atreladas aos aproximadamente 560 mil reais que a USP receberá por 6 dias que renderão, estima-se, 260 milhões aos empresários envolvidos (https://exame.com/casual/por-coronavirus-sao-paulo-boat-show-mergulha-na-raia-da-usp/). E, salvo prova em contrário, o “estacionamento do evento” serão as ruas do campus: espaço público da cidade não só universitária, mas de São Paulo.
O Jornal da USP ainda lembra que “O aluguel do Cepê e da raia olímpica é feito regularmente para eventos esportivos e comerciais e os valores arrecadados são revertidos em manutenção e melhorias dos dois espaços. Para se ter uma ideia, a raia tem custo anual de R$ 1 milhão para os cofres da Universidade”.
Quem frequenta o “Cepê” sabe bem a quantas andam a manutenção e as melhorias dos equipamentos. Quanto aos “cofres da Universidade”, além de eles resultarem dos impostos pagos por milhões de cidadãos paulistas, a contabilidade de quanto custa anualmente cada prédio, docente, funcionária(o), estudante e gramado deve explicitar os inegáveis e imensuráveis benefícios produzidos nas frentes do ensino, pesquisa e extensão às custas de uma mão-de-obra altamente qualificada, cujos salários estão arrochados há anos e que, desde março, tem mantido a USP em funcionamento graças ao trabalho desenvolvido com recursos domésticos.
O Boat Show também vem sendo divulgado em vídeos promocionais postados no Youtube, Facebook e em redes sociais de revistas e empresas náuticas, valendo destacar um (https://www.facebook.com/watch/?v=475860050222337), filmado em julho, no primeiro pico da pandemia, em que os protagonistas são o reitor e o diretor da Escola de Educação Física da USP ao lado de secretários de estado e empresários. Segundo eles, o “cenário incrível” ou “cartão postal” não pode ser desperdiçado, daí ser “cedido” à “sociedade”. Todavia, sabemos que nos finais de semana o campus permanece fechado à população que, em sua quase totalidade, não se compõe de compradores e usuários de iates, lanchas, jet-skis, botes infláveis e outros equipamentos náuticos.
É em uma pertinente matéria produzida pela ADUSP (https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3919-boatshow) que se encontram informações detalhadas e em que é apontado, por exemplo, o risco sanitário para milhares de pessoas: estima-se que mais de 30 mil circularão pelo campus e pela raia.
Não bastasse tal risco, inclusive para funcionários(as) e estudantes da USP que possam estar no campus (o Conjunto Residencial, CRUSP, se situa em frente à raia), bem como o fato disso ser omitido nos vídeos promocionais, um evento empresarial dessa natureza perverte o papel pedagógico-político que uma universidade pública tem o dever de exercer de forma contínua e especialmente aguda durante uma pandemia.
A Congregação repudia a maneira como decisões dessa envergadura são tomadas à revelia de uma democrática e ampla consulta às instâncias representativas da comunidade uspiana, assim como o negacionismo da pandemia e a intransparência das “cessões” e “doações” mencionadas que, espera, sejam devidamente apuradas.
A USP não está à venda, seja em troca de migalhas ou de milhões. Ela é muito mais do que um “cenário incrível” ou um “cartão postal”. É um bem público, da educação pública, um dos maiores que o estado de SP e o Brasil possuem. Suas e seus docentes e funcionárias(os) devem servir a interesses públicos e quem responde administrativamente pela gestão da Universidade deve ser porta-voz intransigente desses interesses.
388ª Reunião Ordinária da Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)
São Paulo, 19 de novembro de 2019