Urbanistas criticam transferência de desabrigados de São Sebastião para Bertioga

Medida gerou clima de todos contra todos no litoral de SP. Para urbanistas, é recomendável que Bertioga receba recursos de contrapartida para acolher socialmente às famílias transferidas e que elas sejam ouvidas no processo

Thiago S. Paulo
Publicado em 20/03/2023, às 12h37 - Atualizado às 15h31

Cerca de 1.200 famílias do Litoral Norte poderão morar nos apartamentos de Bertioga Minha casa Minha Vida - Reprodução

Urbanistas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) consultados pelo Portal Costa Norte criticam a forma como tem se dado a transferência de famílias desabrigadas de São Sebastião para 300 apartamentos de um conjunto habitacional recém-concluído em Bertioga.

A transferência, anunciada no último dia 3 e iniciada há uma semana, foi adotada após as chuvas que fustigaram o litoral norte paulista. As negociações envolveram o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o prefeito de Bertioga, Caio Matheus (PSDB) - que se opôs à medida. 

Segundo o governo estadual, cerca de 1.200 desabrigados de São Sebastião serão alocados temporariamente nos 300 imóveis do Conjunto Habitacional Caminho das Árvores, em Bertioga. O número corresponde a um quinto dos 1.500 apartamentos do conjunto de cinco condomínios construído às margens da Rio-Santos.

300 moradias do Caminho das Árvores serão emprestadas a moradores de São Sebastião por oito meses (Reprodução/Internet)

Famílias desabrigadas precisam ser ouvidas, avaliam urbanistas

Na avaliação da professora Isadora de Andrade Guerreiro, da FAU/USP e do professor José Xaides Alves, do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da Unesp, embora a transferência seja emergencial e provisória, é recomendável que Bertioga receba recursos de contrapartida para acolher socialmente às famílias transferidas e que elas sejam ouvidas e tenham suas particularidades consideradas no processo.

“Eu entendo do ponto de vista da administração pública que eles estão tentando fazer o possível pra dar um encaminhamento pra essas pessoas que seja de melhor qualidade do que ficar acampado em escolas. Isso com certeza. Por outro lado, não é uma solução adequada”, avalia a professora Isadora Guerreiro, que prossegue.

“Eu acho um absurdo completo. Primeiro porque a cidade de Bertioga tem seus próprios problemas. Esse conjunto certamente estava dentro do cronograma do planejamento de Bertioga e certamente há outras famílias de Bertioga que estão precisando destas unidades habitacionais. Então vira uma política de emergência: quem está desabrigado, vai antes. Mas e as pessoas para as quais já existia um planejamento pra serem atendidas, ficam sem nada? Então, do ponto de vista [da população] da cidade de Bertioga, é um absurdo. Do ponto de vista de São Sebastião, se já é um problema construir novas unidades habitacionais em um único ponto, que é o centro de São Sebastião, é pior ainda ir pra outra cidade”. 

Na leitura do professor José Xaides, a transferência de desabrigados de São Sebastião para Bertioga requer atenção às raízes dos moradores. “A questão maior que deve ser analisada também, para além apenas do abrigo, são as situações de pertencimento das pessoas, as situações de entender onde trabalha cada uma das pessoas, o que fazem, onde moravam, a situação das escolas das crianças, se elas vão ser transferidas, os problemas que isso vai acarretar, de transporte, de conhecimento das áreas”, explica o urbanista, que continua.

“Então, pode ser que a questão do vínculo das famílias, das crianças, dos jovens, dos idosos que vão ser remanejados traga uma série de outros problemas, de vagas na escola, de atenção nos postos de saúde, de questões relacionadas ao sentimento de perda dessas pessoas, ao pertencimento delas nas áreas onde elas estavam”.

A CDHU e o governo de São Paulo não responderam que contrapartidas de recursos, se é que haverá alguma, o governo estadual vai disponibilizar para a gestão municipal de Bertioga, se as famílias estão sendo ouvidas ou que tipo de controle está sendo realizado para definir quais famílias de São Sebastião serão transferidas.

A urbanista avalia que o prefeito de Bertioga tem legitimidade para contestar a transferência. “Eu acho que tem duas questões aí. Certamente isso [conjunto habitacional] já estava sendo planejado pra cidade de Bertioga. Não é como se Bertioga fosse uma cidade rica e São Sebastião pobre. Muito pelo contrário, São Sebastião deve ter muito mais recursos do que Bertioga. Por que ele [prefeito de Bertioga] agora vai ter que cuidar dos problemas de São Sebastião? Ele cumpriu a lição de casa dele, levando um conjunto habitacional pra cidade dele. E agora São Sebastião, que não fez a lição de casa, vai usar o que o outro fez. É um pouco desigual”.

No entanto, na avaliação da doutora em urbanismo, não se pode perder de vista a solidariedade aos desabrigados de São Sebastião. “Do ponto de vista humano, é pouco solidário, pouco acolhedor, pouco diplomático. Se eu estivesse aí no meio, veria tratativas diplomáticas em torno disso. Fazer acordos pra garantir que a transferência seja provisória mesmo, pra cidade de Bertioga receber recursos de contrapartida pra acolher essas famílias. Tem questões que podem ser expressas em um acordo diplomático. É assim que os países fazem e as prefeituras podem fazer também”.

Na avaliação do professor José Xaides, o imbróglio evidencia falta de coordenação entre as esferas de governo. “Eu entendo que a questão maior é a falta dessas cidades se verem como integradas, e particularmente nesse caso das moradias de risco, se ainda não tinham uma visão integrada, como urbanista, eu entendo que as cidades precisariam tratar de questões dessa natureza numa visão macro, numa visão de conurbação [integração], de uma região metropolitana litorânea”, opina o professor, que conclui.

“Então, talvez, a falta da prática, a falta da gestão intermunicipal, a falta da gestão integrada, tenha levado a uma visão particular de resistência [à transferência do prefeito de Bertioga] – o que não as justifica, mas pra mim demonstra que a visão integrada ainda não acontece”.

Transferência gerou crise entre órgãos públicos e clima de todos contra todos entre desabrigados

A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) disse que a transferência integra um convênio com a Frente Paulista de Habitação Popular do Estado de São Paulo, como parte do conjunto de ações do governo do estado em resposta à emergência.

Em declarações públicas, o prefeito de Bertioga tem demonstrado resistência à operação. “Está sendo cometida uma injustiça”, protestou ele em entrevista à TV Cultura Litoral na última quinta, dois dias após o início das transferências.

“Porque ao invés de usar cerca de 20% dos imóveis desse programa Entidades que é direcionado para famílias de outros municípios, estão utilizando parte dos apartamentos direcionados pra famílias de Bertioga que têm o mesmo direito das famílias de São Sebastião de receberem suas moradias. Muitas perderam pela segunda, terceira vez, seus móveis, seus mantimentos, porque elas estão em áreas de risco também”, justificou na ocasião.  

Em requerimento protocolado no Ministério Público Estadual (MPE) a que a reportagem teve acesso, o prefeito e vereadores de Bertioga apresentaram, dentre outras alegações, que a cidade também é afetada por déficit habitacional, que o acordo de transferência foi firmado à revelia do município e que a gestão municipal de Bertioga não recebeu uma lista das famílias que serão deslocadas de São Sebastião.

A reportagem questionou a CDHU sobre as alegações apresentadas pela gestão municipal de Bertioga ao MPE. A CDHU disse que as transferências vão continuar e que listas de beneficiários são de responsabilidade das entidades e da Caixa Econômica Federal.

Questionada, a Caixa Econômica informou que não participou da assinatura do Termo de Cooperação e Parceria que determinou a transferência dos desabrigados.

“[O acordo] foi firmado diretamente entre a CDHU do Estado de São Paulo e a entidade organizadora responsável pela obra, Frente Paulista de Habitação Popular, [também] do Estado de São Paulo”, explicou, por meio de nota, o banco público federal.

Desde o anúncio das transferências, moradores de áreas de risco de Bertioga têm organizado atos de protesto na cidade. “Não é justo, porque aqui na Vista Linda [em Bertioga] tem várias famílias que perderam tudo. E infelizmente eles não avisaram a gente, não avisaram ninguém”, disse a empregada doméstica Márcia da Silva, moradora de Bertioga, durante um ato na última quinta.

“Eu pago aluguel. Meu aluguel venceu agora o contrato, esse mês. O rapaz [proprietário] me deu três meses pra sair da casa. Eu não tenho pra onde ir. Infelizmente eu já estava com minhas coisas tudo arrumadas pra mudar pra lá”, lamentou.

Entre os mais de 4.000 desabrigados de São Sebastião, o clima também é de insegurança, relata Evanildes Andrade, presidente da Associação de Moradores da Vila Sahy, bairro de São Sebastião mais afetado pelas chuvas e que reúne o maior contingente de desabrigados.

“[Há desabrigados] ainda nas pousadas e com medo de ir para os apartamentos em Bertioga. Alguns que estão em casa de parentes, amigos, casa de patrão estão sendo direcionados a fazer cadastro de espera para serem abrigados em pousadas”, declarou em entrevista à reportagem. Contatados, desabrigados de São Sebastião transferidos para o conjunto habitacional em Bertioga não quiseram se manifestar.

Pra piorar, há pouco mais de uma semana, dias antes do início das transferências, o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), foi filmado declarando a desabrigados da cidade que a mudança para Bertioga é definitiva, contrariando as informações oficiais e engrossando o caldo da contenda. A reportagem solicitou esclarecimentos sobre a declaração à prefeitura de São Sebastião e ao prefeito. Ninguém respondeu.

 

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